sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Poesia e pedra

Morro Dois Irmãos
Chico Buarque

Dois Irmãos, quando vai alta a madrugada
E a teus pés vão-se encostar os intrumentos
Aprendi a respeitar tua prumada
E desconfiar do teu silêncio

Penso ouvir a pulsação atravessada
Do que foi e o que será noutra existência
É assim como se a rocha dilatada
Fosse uma concentração de tempos

É assim como se o ritmo do nada
Fosse, sim, todos os ritmos por dentro
Ou, então, como um música parada
Sobre um montanha em movimento


Poesia e pedra

A canção Morro Dois Irmãos de Chico Buarque nos insita a mais algumas reflexões acerca da necessidade que o sentimento musical acaba por nos acender. Assim, fazendo uso de uma figura de pensamento chamada prosopopéia ou pessoalização, que significa a atribuição de ações, sentimentos animados a seres inanimados, o escritor e músico nos transporta a uma viagem pelo morro Dois Irmãos, viajem que se alimenta de uma filosofia temporal tão real que conseguimos perceber a relação do morro com os viventes dele nele próprio. Parece uma formação conjunta em que o sentido da pedra vai sendo inscrito pelos que com ela convivem. É interessante perceber essa relação que os seres viventes têm com as coisas ditas inanimadas. Por mais que haja vida na pedra, ela não transcende. A transcendência, característica peculiar ao humano, é o que permite essa relação.  O homem vem estabelecendo desde sempre relações com os seres inanimados. Os povos antigos ao idolatrarem a natureza, de alguma forma anunciavam a possibilidade da poesia de Chico Buarque. Estamos no campo do poético, e aqui permitimo-nos sempre adorar, assim como odiar também, mesmo que uma pedra. É deveras arrogante imaginar uma vida que não adore. É absurdamente inumano não adorar.

O próprio Drummond já dava sinais disso em sua poesia. A relação do poeta com a pedra, a pedreira, é cena constante em seus versos, e em poemas como Sino, dentre outros, o poeta mistura vida e a relação dialética dela com as coisas que por si só não a possuem.

Paredão

Uma cidade toda paredão.
Paredão em volta das casas.
Em volta, paredão, das almas.
O paredão dos precipícios.
O paredão familial.

Ruas feitas de paredão.
O paredão é a própria rua,
onde passar ou não passar
é a mesma forma de prisão.

Paredão de umidade e sombra,
sem uma fresta para a vida.
A canivete perfurá-lo,
a unha, a dente, a bofetão?
Se do outro lado existe apenas
outro, mais outro, paredão?

Chico Buarque dá vida ao morro Dois Irmãos quando canta sua relação com o mundo da vida que nos circunda, nos forma, nos conforma, cria, mata e aprsiona, e nos liberta em forma de versos.

“Aprendi a respeitar tua prumada
e desconfiar do teu silêncio”

Estes versos desmistificam a existência animada do morro em relação aos seus admiradores, ou seja, aqui uma relação com o sublime, que para Kant, se nos evidencia a partir de uma experiência estética com o inalcançável, a imensidão do morro é tamanha, sua imponência incalculável, que torna-se inalcançável e expõe o homem ao seu limite, alcançando o sublime portanto...

Dizer do silêncio do morro seria algo também interessante, talvez aquela angústia que só aos poetas é permitido sentir, o intangível, o inalcançável com palavras, inefável diria,  mas que inflamam o coração. Isso estaria retratado no “tamanho” do silêncio que o morro impõe. O mistério por detrás do morro e por dentro do morro. A imprevisibilidade dos olhares que criam o morro. Só para depois chamá-lo pedra. A pedra já esteve também ao meio do caminho. Foi tudo e nada na criação do caminho da poesia. “No meio do caminho...”

Lançando mão à figura de pensamento anunciada, o autor da canção “pensa ouvir a pulsação atravessada”, como se pudéssemos mensurar, a partir da experiência em relação ao morro, o quanto de vida já passou por ali, em histórias de amor construídas em seu entorno e devaneios sobre sua plenitude. É o morro além de tudo um confidente surdo e mudo. Um confidente tout court.

Uma outra passagem da canção, particularmente assombra: Diria o poeta: “É assim como se a rocha dilatada fosse uma concentração de tempo”, ora, a existência histórico-cultural do homem fica clara na alusão de Chico à  forma dilatada da rocha, colocando o morro como se fosse uma prova das alterações de existência que ele está sempre a presenciar. Vê tudo e nada diz. Apenas sente. A poesia mais uma vez fala à vida. Fernando Pessoa já havia escrito que “ver claro é não agir.” A imponência inerte do morro permite a ele registrar sereno o turbilhão de vida ao se redor. Vidas que se encontram em suas voltas, mas que se perdem também. Mas nada disso passa inerte à rocha que acresce de sentido sua existência a partir dos viventes que nela descansam seus olhares.

Essa relação acaba por dar vida ao morro, coloca a natureza como parte integrante do imaginário e do real das pessoas que por ali passam, e mesmo de quem não vive por lá,. Pois sabem que há um morro em que toda a sentimentalidade se encontra gravada. Inscrição do tempo. É o existir dos homens na pulsação e no dilatar de uma rocha.

O lirismo acaba por tomar conta da última estrofe da canção e o autor brinca com as palavras ao questionar sobre se a movimentação ocorreria dentro da rocha ou se os homens a partir de figuras como a aqui empregada é que distinguiam vida humana ao morro, proporcionando que o mesmo tenha até sentimentos e lembranças. Seríamos nós a criar o ritmo da rocha? Ou seria ela a embalar a existência no entorno de si? Seria o homem inspirado a narrar-se nela? Ou ela quem impunha ao homem a submissão a seu ritmo?

Essa entrega à natureza, para além de mostrar o gênio de Chico, diz muito sobre o sentir poético que por vezes necessita de relações como essas para fazerem o poesia eclodir de dentro dos morros sentimentais que habitam. “Como se o ritmo do nada, fosse, sim, todos os ritmos por dentro.”

Bernardo G.B. Nogueira
BH – inverno - 2012

Link para a canção:
http://www.youtube.com/watch?v=59vF4s89QZI&feature=related

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O que resta...

O que resta...

Dizia palavras inventadas cada vez que sonhava,
cantos em tom de flor que caía,
flauta doce de sua espera enquanto dormia,
sozinho com seu amor, eterna companhia.

E toda noite assim era sinfonia,
na manhã que vinha,
torpor me trazia,
assim como andar cego pela vinha,

o cheiro parecia que não existia,
desatino incontido em mar e nostalgia,
ode serena à lua que ali jazia.

Toda a sua criação se esculpiu em poesia,
minha mão foi agora sua guia,
meu sorriso encantou-se pelo seu sonhar,
                                                               agora é só vida,
                                                               fantasia.

Bernardo G.B. Nogueira
Conselheiro Lafaiete – inverno.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Saber amar

Saber amar

Eu sei que estas a me amar,
de longe pelas agrestes montanhas,
como loba a me espreitar,
com uivo pleno ao luar.

Sei que me vê a cada manhã,
espera minha aurora,
serve-se como maçã,
de minha boca quente.

Em tempo de noites frias,
toma meu corpo,
fazes meu desenho com afã.

De um cego que crava na noite,
olhar esguio a claudicar,
preciso feito outono,

                                               pra dentro do meu peito regressar,
                                               sorrateira naquela sombra.
Eu sabia,
me estava a amar.

Bernardo G.B. Nogueira
Inverno – Conselheiro Lafaiete

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O amor e a tempestade


O amor e a tempestade

Te amo igual ao sol que beija a lua em cada crepúsculo,
escondido e necessário,
improvável qual a neblina que nasce de nosso incesto,
profundo como cada momento de festa.

Sorrateiro feito o fim da tarde
que te espreita a cada escolha,
aquela não dita e tão falada,
o verbo sentido feito toada.

Canção do sertanejo que perde a morada,
namorada nova como cidade desencontrada,
a feição da montanha trazia a lua em serenata

Nos seus amores fui caminhada,
daquela fingida pra criar nuvem inacabada,
em cada florescer fui seu artista em minha desmentida caçada.

Bernardo G.B. Nogueira
BH - inverno

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

How does it feel...

How does it  feel...

Vamos comigo, lá pra onde eu vou,
lá onde está o nosso sol,
depois do raio que encerrou,
nosso encontro enquanto havia brisa.

Antes da tarde,
que é nosso amanhecer,
feito a verdade que morreu,
naquele resto de vida.

A morte do tom que nos criou,
a letra viva que foi nosso dom,
o beijo inscrito em meu coração.

Depois daquela obra,
foi arte nossa entonação,
os olhos de ti poesia:

                                   são em mim,
                                   pintura que molda,
                                   amolda minha face,
                                   sol e noite, explosão!

Bernardo G.B. Nogueira
BH – inverno.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Até onde somos nós...

Até onde somos nós...

“Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião, o tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração..”
Chico Buarque



A aventura de sentir os filmes que assistimos e trazer essa sentimentalidade em palavras é uma forma de escolher um caminho. O caminho que trilho agora mesmo enquanto as letras preenchem o branco de possibilidades com as quais o papel em branco nos interpela. Escolhas, fazemo-las? Fazem-nos elas?

Nosso olhar hoje esteve em relação com o filme 360 de Fernando Meirelles, que além de nos fazer passear pelo nosso entorno, fazendo com que nos encontremos conosco, traz também uma trama que espreita as escolhas que diuturnamente somos obrigados a fazer mas que não temos a menor possibilidade de prever, a menor condição de escolher as relações que elas irão trazer e as estradas que iremos trilhar a partir do rumo tomado. Os encontros e desencontros com que as escolhas nos criam, e ainda, as consequências de nossa vida trazidas pelas escolhas alheias são alguns, ou talvez, os melhores momentos que este filme nos empresta.

Para além da beleza de Maria Flor e da elegância de Hopkins, temos uma interessante mostra de cidades como Paris e Londres, conexões que as cidades não têm, mas que as pessoas que as inscrevem na história acabam por estabelecer. Vidas que se cruzam, mas que não se pretendiam cruzar. Cheiros que se misturam e que não mais se irão evaporar. Faces que se confundem e que o resultado não será mais idêntico ao molde pretendido, nem  parecido com a face que ainda não se lavou.

Uma prostituta que tentou ser modelo fotográfica foi modelada pelas escolhas do seu fotógrafo, aliciada, na verdade. A irmã, quase uma Ismênia pós-moderna, não é nada e é tudo ao mesmo tempo, ela não fazia escolhas diretas, ao menos até então. Havia também um casal com um pai de família bem sucedido e que de tanto trabalhar para ser bem sucedido deixou de ser um bom pai e bom marido, quase se tornou um apreciador de prostitutas estrangeiras e de países menos favorecidos financeiramente. O problema com os idiomas e a condição dos imigrantes retratou bem a relação que o capitalismo feroz acaba por fazer com as pessoas advindas de locais que não se dão bem economicamente.

Na mesma trama havia um fotógrafo imigrante que se relacionava com a esposa do marido que deixou de ser um bom marido. O fotógrafo tinha uma namorada que trouxera do Brasil – Maria Flor – que além da beleza, mostrou ali alguns dos problemas que acontecem com imigrantes sonhadores em uma Inglaterra sombria pelo clima e pelas relações interpessoais, ou mesmo pela falta delas. O fotógrafo queria uma carreira exitosa pela influência de sua amante, Maria Flor, queria o sonho de uma vida feliz com seu namorado apaixonado, não realizou, mas fizera suas escolhas.

Em outra trama, uma ex-acoolatra casara-se com um “capanga” de um bem sucedido empresário. O capanga escolheu ser um bom capanga, perdeu a esposa que se apaixonou pelo seu chefe, chefe que depois escolheu despedir a funcionária, ele escolheu seu trabalho. O romance deles estava a atrapalhar seu rendimento. Escolhas suas e dos outros, rumos seus ou dos outros?

Dentro de todas essas vidas em exposição, o diretor de maneira magistral captou a essência do ocaso que nos conduz. A necessidade de reconhecer que nossas escolhas só são realizáveis concretamente em relação com as escolhas alheias, e daí em diante a fortuna do tempo e a poeira do vento se encarregará em conduzir-nos. De alguma forma é um jeito de mostrar que a exatidão que buscamos, a previsão que imaginamos fazer é apenas uma das engrenagens que nos irão moer e dar-nos como resultado de nós mesmos enquanto história, tragédia. Nesse contexto, a história sai do trono da arrogância racional e moderna e nos entrega a um turbilhão de vicissitudes que são completadas pelo olhar do outro, que além de nos completar, de nos inscrever no mundo, são a própria condição de nossa existência.

Os duplos da existência são muito interessantes. A menina que queria ganhar dinheiro fez existir seu fotógrafo e cafetão quando ela se permitiu à prostituição. A irmã só existiu porque a prostituta precisava de alguém para chorar suas noites infinitas nos braços dos amantes sem amor com quem se deitava. O alto empresário criou o capanga que escolhia as prostitutas para as viagens de trabalho. O marido ruim criou a esposa infiel, esta, por sua vez, criou no fotógrafo o sonho de ser bem sucedido, e ao mesmo tempo criou o fim dos sonhos da imigrante brasileira.  O capanga que só o era por vontade de seu chefe, fez com que a esposa ex-alcoolatra perdesse o emprego na busca pelo amor que ele não dava a ela.

Depois de todos esses duplos a questão que encanta no filme se mostra. Pois, o que nos apanha é  que as pessoas não escolhem sozinhas o que sua vida se irá tornar. Assim, mesmo que a liberdade de escolha sempre bata à nossa porta, quem bate, e as pessoas que iremos encontrar depois que entramos por uma ou outra via é que valem/criam a nossa existência. Na verdade, a formação da existência fica descrita de maneira quase alheia ao nosso livre arbítrio, pois sempre estamos cercados de pessoas a também fazerem escolhas, e o encontro é inevitável. Inevitável como nos apaixonarmos pelo próximo rosto com que nos depararemos em uma tarde de sol ou uma manhã com chuva. São as pessoas que fundam as cidades, seus encontros, seus compromissos e também a falta deles.

Quando a menina que foi tirar fotos escolheu tornar-se prostituta, paradoxalmente estreitou os laços daquele marido que havia se tornado ruim, mas que por uma escolha dos outros – isso fica claro no filme -, não conseguiu se relacionar com ela. De outro lado, o alto empresário perdeu a vida também porque contratou seus serviços, ela escolheu ser prostituta, ele escolheu pagar por ela, pagou com a vida. O fotógrafo namorado de Maria Flor ficou sem a amante que voltou a ser uma esposa fiel.  Ficou também sem a namoradinha imigrante que retornou ao Brasil. A viagem dela também foi uma sucessão de escolhas partilhadas, mas que em verdade, a nosso ver, não se encaixou bem na trama, a não ser por Hopkins e seu aprendizado com a menina brasileira. A não ser por vermos claro a brasileiridade a explodir no abraço apertado da menina com o velho ator.

A prostituta fez escolhas, obteve dinheiro, não se sabe o seu destino, mas ela levará as escolha do seu cafetão para sempre na memória de seu corpo gasto. O capanga que viu seu chefe morrer, escolheu não socorrê-lo, uma morte e uma escolha. Depois de escolher que não iria ser mais capanga, escolheu que iria fugir com irmã da prostituta, que casualmente havia conhecido enquanto esperavam: ela a irmã prostituta, ele, o chefe que pagava pelo prazer fatal.

Quando fogem, parece que o diretor mostra sua face. O acaso roda o moinho da nossa existência, e nós, enquanto joguetes e jogadores de nossa própria vida, seguimos nossa sina ou ela nos segue. Sempre devemos escolher uma via. A tragédia do filme fica nítida quando percebemos que a decisão é crítica e trágica, pois ao escolhermos deixamos todas as demais possibilidades para trás e, quando muito, podemos fazer previsões tolas daquilo que virá. Tolas, pois o que virá é o outro, também com todas as suas escolhas, seus benefícios e suas mazelas. Seus amores e suas traições, certezas e imprevisões, face nua e surdez.

Vestir-se com suas escolhas é o que nos resta, até que o encontro nos faça perceber que toda aquela vestimenta não passa de uma fantasia que dura o trágico instante do próximo passo, do próximo olhar e da próxima esquina. O ocaso nos abraça e não nos deixa nunca mais, acalenta nossos passos de maneira sorrateira. Isso tudo enquanto pensamos estar a conduzir nosso caminho. Talvez imaginar a existência seja nossa única saída, ao menos enquanto sonhamos a realidade pode ser mais bela, ou talvez, menos trágica. Tragédia que caracteriza todos os encontros. Mas será que nossa imaginação também não se encontra com o outro? Correr não adianta, pois na roda da vida, o que nos sobra é uma espécie de escravidão, como num círculo infinito que não nos avisa quando começamos a escolher e quando começamos a ser escolhidos. É mesmo de muita lucidez do diretor escolher 360 para narrar estas estórias reais do humano, ora, os gregos tinha o círculo como a figura mais perfeita e é exatamente nele que nossa errância se nos mostra enquanto realidade. Também Platão, grego por excelência, em seu O Banquete conta que existiriam os andróginos, seres que possuíam uma forma circular e que carregavam as características do masculino e do feminino e por isso mesmo tinham muita força e se tornaram arrogantes diante dos deuses, o que levou a estes cortarem os andróginos em dois e daí nasceu o sonho do amor, o sonho de encontrar sua metade. Busca que de alguma forma rege a sinfonia dissonante da história humana, mas que depende das escolhas que sua metade irá fazer: encontrá-la ou padecer à sua procura, está aí a tragédia circular de Fernando Meirelles, 360, 360, 360...

Bernardo G.B. Nogueira
BH – inverno.

sábado, 18 de agosto de 2012

Mentiras sinceras


Mentiras sinceras


“Não sei se preguiçoso ou se covarde debaixo do meu cobertor de lã”
Chico Buarque

As pessoas estão com uma mania interessante de dizer que querem o mínimo para sobreviver. De alguma forma o fato de dizerem que querem sobreviver já anuncia algo. Só viver? Viver só? Ou apenas viver sobre a vida? Ou ainda, viver algo sobre a vida? Em cima de sua vida? Será que dá pra viver outra vida? E tem ainda a face piorada da coisa: Sobreviver denota certo dissabor com a própria vida. É também interessante perceber o quanto de vida do outro admiramos. Pois, sobreviver é apenas resistir a um fardo. E nesse caso quando olhamos para o jardim ao lado. Lá está o oasis que gostaríamos de habitar. Isso porque não falamos com o vizinho. Que por sua vez, já até criou um buraco no muro para espiar como é nossa vida. Quão boa ela supostamente seria.

Mas o caso aqui não é de analisar os descontentamentos com as ervas daninhas que existem em nosso jardim ou as flores sempre lindas que florescem lá no jardim do outro. Vamos rumar para a coisa do mínimo que está na ordem do dia e que também tem seu charme e falsidade. Caminhando pelas ruas não é difícil perceber as pessoas que tentam desesperadamente se dispor do muito e encontrar esse mínimo para ser feliz.
Um motorista que se dispõe do máximo de desprazer que possui ao enfrentar o trânsito estranho da cidade e vê o mínimo de beleza ao seu redor enquanto espera o engarrafamento. O vendedor de quinquilharias deixa pra trás a certeza de que não irá convencer a todos que seus badulaques são bons e sorri para o transeunte que diz a ele: “volto depois”. Tragédia e comédia encenadas em um ato só. Sozinho o vendedor encena toda uma vida. Mas não importa, ele quer só o mínimo. A mulher loira preferiu se dispor do seu cabelo preto e se rendeu ao mínimo de tinta para estar mais adequada aos ditames estéticos. Mas pode ser mínimo aquilo que quase todos fazem igual? O professor deixa os livros em casa e entra em sala certo de que precisa do mínimo de inspiração para criar uma boa aula. Pobre. Diante da mínima interpelação de um aluno que pesquisa ao máximo na internet esquece que iria se esquecer dos clássicos e cita um sem fim de autores para justificar sua ideia primeira de não carregar sob as pestanas toda a história de um lado do globo. Normalmente é o Ocidente. Esse mesmo que criamos e esse mesmo que agora pensa no mínimo.

Enquanto essas personagens tentam encontrar o mínimo, corre um boato pela internet que há um mantra oriental que equilibra as energias. Logo nos valemos da canção/mantra entoado pelo Nando Reis e nos sentimos pesados. Por vezes a relação física é real, estamos mesmo cheios de comidas enlatadas e prontas. Pronto. Lá se vai a tal possibilidade do mínimo. Entregamo-nos ao máximo de culpa possível. A sensação é quase paralisante. O mínimo de locomoção cansaria. Enfim, alcançamos o mínimo. Dormimos. Mas ao dormir ficamos cansados com o excesso de sonhos irrealizados. Talvez de alguma forma seja melhor nem sonhar. São tantas as coisas que nos oferecem para sonhar que ao menor sinal de ir buscar essas coisas uma sensação clara de impossibilidade de realização cai sobre nossos ombros. E como os ombros estão carregados de coisas. Inclusive da curiosidade que alerta para não descuidarmos do jardim vizinho. Lá é bom, não tem peso e só tem o mínimo.

Convém, quem sabe, encontrar na internet um atalho para encontrar esse tal mínimo. Aliás, a internet hoje é um pouco sinal de atalhos. Inclusive, isso é bom para percebemos o quanto estamos, de certa maneira, a conseguir o mínimo. Mínimo de trabalho para encontrar uma informação. E, em consequência, mínimo de tempo perdido com conhecimentos novos, e assim, mínimo de profundidade, máximo de superfície, mínimo de lucidez, máximo de conhecimento falso, mínimo de alcance teórico e crítico, máximo de massificação, mínimo de homem. Sinal dos tempos. Tempos de mínimo e de atalhos. Até encontramos um atalho para o mínimo. Aí ele vem junto com uma satisfação tão real quanto o tempo que dura uma relação sexual sem amor. Inversamente proporcional ao gozo que antecede, sucede e concebe o amor com amor. Liquidez, diriam uns, fugacidade diriam outros. Correria, diriam aqueles com senso mais prático. Esses últimos bem adequados com a relativização dos termos máximo e mínimo. Máximo quando tem que ser máximo. Mínimo quando também convém que assim seja. E mais uma vez a ciranda volta girar. E imagine se ainda “os tubarões fossem homens.” Nem quero pesar.

De grão em grão enchemos nosso papo com esse papo de máximo e de mínimo. Ditos que nem importam tanto assim. Pois a coisa hoje está mais simples do que nunca. Como já dito, máximo quando solicitarem, mínimo, da mesma forma. O que são? Não importa. É filosofia demais. E filosofia hoje só a de buteco mesmo. Pois lá é que as pessoas gostam de criar teorias como as do máximo e a do mínimo. Tem uma solução mágica para o amor e outra para a política. O melhor time escalado de pronto e o máximo de certeza. Vivemos tempos de certezas. Discutir gera desavenças, e isso não é bom para o network. Não dá mesmo pra saber qual o mínimo e qual o máximo. Não dá pra perceber ao certo se estão certos o motorista que vê o máximo de beleza na flor que ele passou por cima com o ônibus, ou mesmo a loira que não é loira e não é ninguém além da próxima cor do cabelo. Tem também o vendedor de badulaques que ri de sua vida e que enxerga no mínimo de farsa do transeunte que não irá voltar, seu máximo de felicidade. E ainda o professor que se esquece que não levou os livros e comenta todos os que leu para convencer o aluno.

Motorista, vendedor, mulher loira e professor. Todos envolvidos na busca pelo seu mínimo. Uma busca falsa que causa uma preguiça imensa. Proporcional a buscar o meu mínimo. Isso porque o motorista está extenuado com sua profissão, o vendedor irá pedir trocados para interar seu prato, a mulher loira irá tentar encontrar um companheiro que a realize já que ela não pode sem uma tinta, e o professor, que irá voltar para sua casa e se entregar a mais estudos. Deve ser também sinal dos tempos mentir para parecer adaptado. Deve ser um sinal dos tempos perceber como somos irritantes e iguais. Admiramos o jardim do vizinho, gastamos o máximo de dinheiro para comprar o mínimo, não estamos contentes com nossa situação, mas insistimos em dizer que não temos preguiça e que o melhor não é ficar debaixo do cobertor, com o máximo de preguiça e o máximo de samba, quiçá com o máximo de amor até mais tarde...

Bernardo G.B. Nogueira
Belo Horizonte – inverno. 

domingo, 12 de agosto de 2012

Sem nada


Sem nada

Quanto de chão precisa meu céu,
a altura do suspiro alcança-me como um réu,
vítima e algoz  dos meus passos,
com verdade e súplica de pés descalços.

Uma nova noite se repete,
enquanto as horas palpitam,
dilacera o olhar escarlate,
faz frio e a brisa é disparate.

Dum colo esquecido,
forma e cor explodem, um estampido,
silêncio intenso, é negro o sorriso.

E as estrelas da estrada,
restam jogadas, um nada,
foi etéreo o rumo que conduziu a farsa.

Fado perdido,
um choro,
uma serenata.

Ouvido surdo do coração,
primavera com flores caídas,
toda a estrada restou desabitada.

Cena criada feito caçada,
solitária e inerte,
o amor fez ali sua morada, esperada.

E de tanto esquentar,
o olhar cálido foi a única chegada.

Pés descalços, flor no solo, alma irrigada.

Bernardo G.B. Nogueira
Horizonte – Belo e novo – inverno.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Mordaça

Mordaça

E quanto o amor me cobrou,
foi gesto insano feito nau,
sem mastro a seguir o sol,
porto distante e sem farol.

Me deixou sem caminho,
ao meio das pedras,
sem carinho, cheio da festa,
que deixou um rabisco e uma mesa posta.

Como ondas que não bateram,
o ronco de ti foi meu apelo,
em som profundo e ausente, meu inferno.

A queimar sozinho,
a ver as cinzas caindo,
pelo seu preciso desatino.

Seu pranto assoviou,
a acordar meu tom,
o fundo do mar dizia do fado,
e a pérola criada me foi arrancada.

Sem brilhar, resisti ao preço,
acorrentado a ti,
feito criança no berço.

Bernardo G.B. Nogueira
BH - inverno

domingo, 5 de agosto de 2012

Eu sei que você dorme


Eu sei que você dorme

Eu sei que você dorme,
sem saber de mim,
do meu delírio sem fim,
da minha dose infame,
do meu calor que ferve,
da minha dor que te serve.

Como sal que alimenta,
como chegada que acalenta.

Sei que você dorme,
tranquila como orquestra,
sem sons que te despertem,
como a lua que aquece.

Depois desse sono,
há o mundo que te recebe.

O meu som ecoa,
ninguém percebe.

Minha morte,
leve e cálida,
te concebe.

Depois da vida,
o amor que antecede.
Depois da morte,
renasce a festa,
de toda a sua beleza que me encerra,
qual câncer, me infesta,
qual seca,
torna agreste minha vista
e só a sua visão se manifesta...

Bernardo G.B. Nogueira
Inverno – Ponte Nova

sábado, 4 de agosto de 2012

O não ser que é...


O não ser que é...

Ah se tu fosse apaixonada por mim,
não te inventaria até altas horas,
teria a noite tranquila, haveria aurora,
não choveria tão forte, a vidraça não me amedrontaria.

Seu cheiro faria nascer minha trama,
faria delirar minha cama,
criaria teias infinitas em meu mar,
libertaria a selva toda daquele olhar

Cairia sobre o ar um jeito de primavera,
para brindar a flor que em mim crescera,
jardim de sonhos como criança faceira.

O sentimento não seria traduzido,
a linguagem não restaria realizada,
Ah se tu fosse apaixonada por mim!

Esse poema não nasceria,
o sangue dele não brotaria,
a imensidão teria fim.

O amor precisa de um não,
enfim...

Bernardo G.B. Nogueira
Conselheiro Lafaiete - inverno


Acordes, e eu, mais não...


Acordes, e eu, mais não...

Como esse violão diz tanto de mim,
logo eu que quis me esconder,
fugir dessa nota que captura toda crosta,
furta e me desespera quando foge.

Quanta ilusão sai nessas notas,
porque o tanto desta invenção?
Qual o mar dessa visão?
...Perdido em desatino cor do furacão.

Feito seus olhos que levaram,
não me devolveram não,
solto em tempestade e trovão.

Depois do cataclisma,
olho do dragão,
essa orquestra me sinfonia em clarão.

Fui preso em cordas como caixão,
delas me soltei como pássaro da prisão,
de sua boca que me cantou.

O último canto!
Precipício de uma nota só!

Bernardo G.B. Nogueira
Inverno – Ponte Nova

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Adeus


Adeus

E agora o que vou fazer?
se há tanta distância entre seu inverno e meu outono,
métricas perdidas, passado no forno,
estrada inscrita em minha pele sem prazer.

Como vou ferver?
Se o toque da sua flor não encanta,
se a pétala de sua rosa decanta
e depois do gole que não faz derreter.

Se a face de sua boca me cala,
enquanto meu corpo reclama,
feito mar sem ressaca.

Enquanto trilha que não clama,
depois dum olhar que não sufoca,
resta a pele, que não é mais minha alma.

Bernardo G.B. Nogueira – inverno
Ponte Nova