sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Poesia e pedra

Morro Dois Irmãos
Chico Buarque

Dois Irmãos, quando vai alta a madrugada
E a teus pés vão-se encostar os intrumentos
Aprendi a respeitar tua prumada
E desconfiar do teu silêncio

Penso ouvir a pulsação atravessada
Do que foi e o que será noutra existência
É assim como se a rocha dilatada
Fosse uma concentração de tempos

É assim como se o ritmo do nada
Fosse, sim, todos os ritmos por dentro
Ou, então, como um música parada
Sobre um montanha em movimento


Poesia e pedra

A canção Morro Dois Irmãos de Chico Buarque nos insita a mais algumas reflexões acerca da necessidade que o sentimento musical acaba por nos acender. Assim, fazendo uso de uma figura de pensamento chamada prosopopéia ou pessoalização, que significa a atribuição de ações, sentimentos animados a seres inanimados, o escritor e músico nos transporta a uma viagem pelo morro Dois Irmãos, viajem que se alimenta de uma filosofia temporal tão real que conseguimos perceber a relação do morro com os viventes dele nele próprio. Parece uma formação conjunta em que o sentido da pedra vai sendo inscrito pelos que com ela convivem. É interessante perceber essa relação que os seres viventes têm com as coisas ditas inanimadas. Por mais que haja vida na pedra, ela não transcende. A transcendência, característica peculiar ao humano, é o que permite essa relação.  O homem vem estabelecendo desde sempre relações com os seres inanimados. Os povos antigos ao idolatrarem a natureza, de alguma forma anunciavam a possibilidade da poesia de Chico Buarque. Estamos no campo do poético, e aqui permitimo-nos sempre adorar, assim como odiar também, mesmo que uma pedra. É deveras arrogante imaginar uma vida que não adore. É absurdamente inumano não adorar.

O próprio Drummond já dava sinais disso em sua poesia. A relação do poeta com a pedra, a pedreira, é cena constante em seus versos, e em poemas como Sino, dentre outros, o poeta mistura vida e a relação dialética dela com as coisas que por si só não a possuem.

Paredão

Uma cidade toda paredão.
Paredão em volta das casas.
Em volta, paredão, das almas.
O paredão dos precipícios.
O paredão familial.

Ruas feitas de paredão.
O paredão é a própria rua,
onde passar ou não passar
é a mesma forma de prisão.

Paredão de umidade e sombra,
sem uma fresta para a vida.
A canivete perfurá-lo,
a unha, a dente, a bofetão?
Se do outro lado existe apenas
outro, mais outro, paredão?

Chico Buarque dá vida ao morro Dois Irmãos quando canta sua relação com o mundo da vida que nos circunda, nos forma, nos conforma, cria, mata e aprsiona, e nos liberta em forma de versos.

“Aprendi a respeitar tua prumada
e desconfiar do teu silêncio”

Estes versos desmistificam a existência animada do morro em relação aos seus admiradores, ou seja, aqui uma relação com o sublime, que para Kant, se nos evidencia a partir de uma experiência estética com o inalcançável, a imensidão do morro é tamanha, sua imponência incalculável, que torna-se inalcançável e expõe o homem ao seu limite, alcançando o sublime portanto...

Dizer do silêncio do morro seria algo também interessante, talvez aquela angústia que só aos poetas é permitido sentir, o intangível, o inalcançável com palavras, inefável diria,  mas que inflamam o coração. Isso estaria retratado no “tamanho” do silêncio que o morro impõe. O mistério por detrás do morro e por dentro do morro. A imprevisibilidade dos olhares que criam o morro. Só para depois chamá-lo pedra. A pedra já esteve também ao meio do caminho. Foi tudo e nada na criação do caminho da poesia. “No meio do caminho...”

Lançando mão à figura de pensamento anunciada, o autor da canção “pensa ouvir a pulsação atravessada”, como se pudéssemos mensurar, a partir da experiência em relação ao morro, o quanto de vida já passou por ali, em histórias de amor construídas em seu entorno e devaneios sobre sua plenitude. É o morro além de tudo um confidente surdo e mudo. Um confidente tout court.

Uma outra passagem da canção, particularmente assombra: Diria o poeta: “É assim como se a rocha dilatada fosse uma concentração de tempo”, ora, a existência histórico-cultural do homem fica clara na alusão de Chico à  forma dilatada da rocha, colocando o morro como se fosse uma prova das alterações de existência que ele está sempre a presenciar. Vê tudo e nada diz. Apenas sente. A poesia mais uma vez fala à vida. Fernando Pessoa já havia escrito que “ver claro é não agir.” A imponência inerte do morro permite a ele registrar sereno o turbilhão de vida ao se redor. Vidas que se encontram em suas voltas, mas que se perdem também. Mas nada disso passa inerte à rocha que acresce de sentido sua existência a partir dos viventes que nela descansam seus olhares.

Essa relação acaba por dar vida ao morro, coloca a natureza como parte integrante do imaginário e do real das pessoas que por ali passam, e mesmo de quem não vive por lá,. Pois sabem que há um morro em que toda a sentimentalidade se encontra gravada. Inscrição do tempo. É o existir dos homens na pulsação e no dilatar de uma rocha.

O lirismo acaba por tomar conta da última estrofe da canção e o autor brinca com as palavras ao questionar sobre se a movimentação ocorreria dentro da rocha ou se os homens a partir de figuras como a aqui empregada é que distinguiam vida humana ao morro, proporcionando que o mesmo tenha até sentimentos e lembranças. Seríamos nós a criar o ritmo da rocha? Ou seria ela a embalar a existência no entorno de si? Seria o homem inspirado a narrar-se nela? Ou ela quem impunha ao homem a submissão a seu ritmo?

Essa entrega à natureza, para além de mostrar o gênio de Chico, diz muito sobre o sentir poético que por vezes necessita de relações como essas para fazerem o poesia eclodir de dentro dos morros sentimentais que habitam. “Como se o ritmo do nada, fosse, sim, todos os ritmos por dentro.”

Bernardo G.B. Nogueira
BH – inverno - 2012

Link para a canção:
http://www.youtube.com/watch?v=59vF4s89QZI&feature=related

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