Mentiras sinceras
“Não sei se preguiçoso ou se covarde
debaixo do meu cobertor de lã”
Chico Buarque
As pessoas estão com uma mania
interessante de dizer que querem o mínimo para sobreviver. De alguma forma o
fato de dizerem que querem sobreviver já anuncia algo. Só viver? Viver só? Ou
apenas viver sobre a vida? Ou ainda, viver algo sobre a vida? Em cima de sua
vida? Será que dá pra viver outra vida? E tem ainda a face piorada da coisa:
Sobreviver denota certo dissabor com a própria vida. É também interessante
perceber o quanto de vida do outro admiramos. Pois, sobreviver é apenas
resistir a um fardo. E nesse caso quando olhamos para o jardim ao lado. Lá está
o oasis que gostaríamos de habitar. Isso porque não falamos com o vizinho. Que
por sua vez, já até criou um buraco no muro para espiar como é nossa vida. Quão
boa ela supostamente seria.
Mas o caso aqui não é de analisar
os descontentamentos com as ervas daninhas que existem em nosso jardim ou as
flores sempre lindas que florescem lá no jardim do outro. Vamos rumar para a
coisa do mínimo que está na ordem do dia e que também tem seu charme e
falsidade. Caminhando pelas ruas não é difícil perceber as pessoas que tentam
desesperadamente se dispor do muito e encontrar esse mínimo para ser feliz.
Um motorista que se dispõe do
máximo de desprazer que possui ao enfrentar o trânsito estranho da cidade e vê
o mínimo de beleza ao seu redor enquanto espera o engarrafamento. O vendedor de
quinquilharias deixa pra trás a certeza de que não irá convencer a todos que
seus badulaques são bons e sorri para o transeunte que diz a ele: “volto
depois”. Tragédia e comédia encenadas em um ato só. Sozinho o vendedor encena
toda uma vida. Mas não importa, ele quer só o mínimo. A mulher loira preferiu
se dispor do seu cabelo preto e se rendeu ao mínimo de tinta para estar mais
adequada aos ditames estéticos. Mas pode ser mínimo aquilo que quase todos
fazem igual? O professor deixa os livros em casa e entra em sala certo de que
precisa do mínimo de inspiração para criar uma boa aula. Pobre. Diante da
mínima interpelação de um aluno que pesquisa ao máximo na internet esquece que
iria se esquecer dos clássicos e cita um sem fim de autores para justificar sua
ideia primeira de não carregar sob as pestanas toda a história de um lado do
globo. Normalmente é o Ocidente. Esse mesmo que criamos e esse mesmo que agora
pensa no mínimo.
Enquanto essas personagens tentam
encontrar o mínimo, corre um boato pela internet que há um mantra oriental que
equilibra as energias. Logo nos valemos da canção/mantra entoado pelo Nando
Reis e nos sentimos pesados. Por vezes a relação física é real, estamos mesmo
cheios de comidas enlatadas e prontas. Pronto. Lá se vai a tal possibilidade do
mínimo. Entregamo-nos ao máximo de culpa possível. A sensação é quase paralisante.
O mínimo de locomoção cansaria. Enfim, alcançamos o mínimo. Dormimos. Mas ao
dormir ficamos cansados com o excesso de sonhos irrealizados. Talvez de alguma
forma seja melhor nem sonhar. São tantas as coisas que nos oferecem para sonhar
que ao menor sinal de ir buscar essas coisas uma sensação clara de
impossibilidade de realização cai sobre nossos ombros. E como os ombros estão
carregados de coisas. Inclusive da curiosidade que alerta para não descuidarmos
do jardim vizinho. Lá é bom, não tem peso e só tem o mínimo.
Convém, quem sabe, encontrar na
internet um atalho para encontrar esse tal mínimo. Aliás, a internet hoje é um
pouco sinal de atalhos. Inclusive, isso é bom para percebemos o quanto estamos,
de certa maneira, a conseguir o mínimo. Mínimo de trabalho para encontrar uma
informação. E, em consequência, mínimo de tempo perdido com conhecimentos
novos, e assim, mínimo de profundidade, máximo de superfície, mínimo de
lucidez, máximo de conhecimento falso, mínimo de alcance teórico e crítico,
máximo de massificação, mínimo de homem. Sinal dos tempos. Tempos de mínimo e
de atalhos. Até encontramos um atalho para o mínimo. Aí ele vem junto com uma
satisfação tão real quanto o tempo que dura uma relação sexual sem amor.
Inversamente proporcional ao gozo que antecede, sucede e concebe o amor com
amor. Liquidez, diriam uns, fugacidade diriam outros. Correria, diriam aqueles
com senso mais prático. Esses últimos bem adequados com a relativização dos
termos máximo e mínimo. Máximo quando tem que ser máximo. Mínimo quando também
convém que assim seja. E mais uma vez a ciranda volta girar. E imagine se ainda
“os tubarões fossem homens.” Nem quero pesar.
De grão em grão enchemos nosso
papo com esse papo de máximo e de mínimo. Ditos que nem importam tanto assim.
Pois a coisa hoje está mais simples do que nunca. Como já dito, máximo quando
solicitarem, mínimo, da mesma forma. O que são? Não importa. É filosofia
demais. E filosofia hoje só a de buteco
mesmo. Pois lá é que as pessoas gostam de criar teorias como as do máximo e a
do mínimo. Tem uma solução mágica para o amor e outra para a política. O melhor
time escalado de pronto e o máximo de certeza. Vivemos tempos de certezas.
Discutir gera desavenças, e isso não é bom para o network. Não dá mesmo pra saber qual o mínimo e qual o máximo. Não
dá pra perceber ao certo se estão certos o motorista que vê o máximo de beleza
na flor que ele passou por cima com o ônibus, ou mesmo a loira que não é loira
e não é ninguém além da próxima cor do cabelo. Tem também o vendedor de
badulaques que ri de sua vida e que enxerga no mínimo de farsa do transeunte
que não irá voltar, seu máximo de felicidade. E ainda o professor que se
esquece que não levou os livros e comenta todos os que leu para convencer o
aluno.
Motorista, vendedor, mulher loira
e professor. Todos envolvidos na busca pelo seu mínimo. Uma busca falsa que
causa uma preguiça imensa. Proporcional a buscar o meu mínimo. Isso porque o
motorista está extenuado com sua profissão, o vendedor irá pedir trocados para
interar seu prato, a mulher loira irá tentar encontrar um companheiro que a
realize já que ela não pode sem uma tinta, e o professor, que irá voltar para
sua casa e se entregar a mais estudos. Deve ser também sinal dos tempos mentir
para parecer adaptado. Deve ser um sinal dos tempos perceber como somos
irritantes e iguais. Admiramos o jardim do vizinho, gastamos o máximo de
dinheiro para comprar o mínimo, não estamos contentes com nossa situação, mas
insistimos em dizer que não temos preguiça e que o melhor não é ficar debaixo
do cobertor, com o máximo de preguiça e o máximo de samba, quiçá com o máximo
de amor até mais tarde...
Bernardo G.B. Nogueira
Belo Horizonte – inverno.
Texto perfeito!
ResponderExcluirQuem lê e não se identifica em nenhum momento é sinceramente um mentiroso!