quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Criar e viver

Criar e viver

“Hoje você é quem manda, falou tá falado,
 não tem discussão...”
Chico Buarque


De novo a questão que enreda nossa mirada sobre uma produção cinematográfica é regida pela forma necessária e diríamos, inevitável, com que os argentinos tratam a fase negra do regime ditatorial em seu país. Dizer que é necessário é ao mesmo tempo dizer que é inevitável – e insistimos, pois são termos que ainda quedam longe em nossas terras quando tratamos deste assunto.
O filme é intitulado “Infância Clandestina”. O título por si só traz já interessantes discussões que povoam sempre nosso imaginário: a existência das crianças e a existência clandestina. Temas que nos nossos dias, tão racionais e tão públicos, soam ainda mais iminentes. O diretor Benjamin Ávila conduz o espectador a uma visita ao modus de realização do regime na Argentina, sob uma perspectiva que mistura desde a velha discussão ideológica e dos limites que ele coloca, e da libertação e da necessidade de sua existência, bem como, traz a tona um olhar sobre a afetação da atuação da ditadura no sentido de expor mesmo uma criança à sua mão de ferro. Outra chave do filme, e penso ser essa uma das mais interessantes, é a questão da identidade, vista pelo prisma colonialesco-impositório e castrador, e pela face interessante com que Juan ou Ernesto iriam vivenciá-la. O outro mote que gostaria de dizer é a relação criança e amor, temas que de alguma forma acabam sempre a andar juntos. Amor e poesia que o tio de Juan encarregou-se muito bem de manter acesos durante o tempo em que durou, pois fora morto também.
Quando os pais de Juan, envolvidos na guerrilha armada contra o regime resolvem voltar à Argentina, necessariamente valem-se dos disfarces já conhecidos com que as pessoas deveriam se armar para viver em seu país sem concordar com a imposição do regime. Desde casas clandestinas, passando por inúmeros disfarces, a reuniões sigilosas, até o que considero a parte mais sutil do filme – a identidade de seu filho, oficialmente registrado como Juan e existencialmente rebatizado Ernesto, bem a propósito diga-se.
Assim, a trama desenvolve-se com o cotidiano de uma família de esquerda que pretende não se entregar ao delírio ideológico imposto em momentos como esse. Ernesto tem, portanto, uma infância atípica em face dos modelos que se quer considerar “normal”. Inevitavelmente envolvido nas reuniões secretas realizadas por seus pais, a criança, a despeito das inúmeras regras criadas para uma “criação” correta, adquire noções interessantes que constroem seu imaginário de forma, diríamos, ao menos um tanto menos obtusa e alienada que a maioria dos pais impõe aos seus filhos – a imposição de uma família, um modelo, também é um claro “aparelho ideológico”. Nesse sentido, a clandestinidade da infância de Juan pode ser percebida como uma maneira interessante de revolução. Ora, ao chegar a uma escola que pregava coisas como: os espanhóis trouxeram a língua, a civilização sic, para os povos latinos, o jovem já sentia-se mal. E é evidente que isso não poderia ser considerado ruim. Clandestino então, aparece aqui como um algo que é necessário para que a visão seja realizada por um outro  viés, se da clandestinidade ou não, isso é o menos importante, necessário perceber que a visão de Juan o permitiria entender a metáfora utilizada por Slavoj Zizek para explicar a construção da dominação ideológica: estamos nós como espectadores em uma sala de cinema, enquanto por detrás dos panos não sabemos o que ocorre. Parecido com o que Chico Buarque canta: “o que será?” Isso, pois a própria informação etimológica da palavra nos ajuda nesta compreensão, origina-se da base do verbo cellare, que nos indica “esconder ou disfarçar”. Assim, no entendimento que temos deste ponto, Juan ou Ernesto, possuiu desde sempre uma infância clandestina e que por isso mesmo o torna apto a perceber aquilo que a ele é já próximo, o que é escondido, velado, aliás, desvelar seria um bom verbo para enxergarmos a existência de Juan. Desvelou sua infância enquanto clarividência de um horror que estava a vivenciar. E não digo isso ingenuamente como uma criança que é adestrada, não, ele desvela o horror com consciência dele. Essa é a tarefa que vemos na existência das crianças e dos poetas, que têm uma espécie de noção antecipada da existência. Noção antecipada é ao que chamamos toda forma de percepção que não aquela maculada por uma imposição conceitual. Assim, poetas e crianças fogem a essa amarra.
Em uma determinada cena, quando a turma de Juan, em um acampamento, está a ser submetida exatamente à função castrante da escola de que nos fala Althusser, o menino, em um gesto lindo que mistura, poesia, amor, afeto e revolução, convida sua “amada” para sair pela floresta. A lucidez, clandestina à maioria dos seus colegas, é absolutamente presente na infância de Juan. Portanto, quando o menino é obrigado a mudar de identidade para existir dentro do regime, em verdade, nasce ali sua maior autenticidade, pois, se a despeito da perseguição de seus pais, ele não poderia existir como Juan e apenas como Ernesto, de outro lado, exerceu uma característica ausente em tempos tristes de imposições conceituais. Ernesto foi compositor de sua obra, e à maneira nietzschiana, escreveu sua vida como a obra de arte que quis. Subverteu o sistema da escola quando se recusou a hastear a bandeira da Argentina, impôs-se à ordenação da escola, e enquanto os outros encenavam de maneira boçal a invasão das Américas, ele se enamorava no meio da floresta. Amor e revolução são realmente bons namorados.Para essa idéia um fragmento de um poema nosso:
Demais é rabiscar livros com heresias sentimentais,
derrubar estados e construir arco-íris,
transpor  imagens, só ver miragens,
carregar no peito nada além do que sentiu,
trazer uma mala cheia de estórias,
inventá-las sempre que puder,
deixar escorrer pela pele toda a efusão,
do encontro tornar vida e morte,
na estação mirar o próximo porto,
descansar com os ouvidos ao som inaudito,
ferver no gelo do corpo devastado,
inverter a direção do mapa, só pra ver onde não vai dar,
de mãos dadas seguir com o algoz,
zombar dos deuses, adorar o humano,
com flauta doce, receber o inimigo,
desconfiar da razão, entregar-se cândido ao abismo da emoção, 
que o que vem seja anunciação, e o que vai, saudade,
a ausência, criação,
olhares novos, perfeição,
ao invés do verbo, poesia e canção,
pois sentimento, se é sentimento mesmo, tem que ter heresia, senão é convenção...

De alguma forma a amarra criada pelo regime, ressoou em Ernesto de maneira inversa. Enquanto não possuía uma identidade oficial, ele inventava a sua própria. Assim como seu homônimo o fizera tantas vezes, com a mesma sanha libertária. Nesse sentido, a ausência de identidade talvez seja uma mostra da necessidade da ausência de uma aceitação impune das variegadas ideologias que nos são impostas diuturnamente.
O tio de Ernesto é outra figura interessantíssima da trama, pois figura como aquele que cria subversão dentro da subversão. Desobedece ao pai de Ernesto, seu líder, e realiza ações que evidenciam a necessária incompletude que é do humano caracter inalienável. Permite ao menino Ernesto ter a avó no dia do seu aniversário, a contragosto do líder. Ensina o menino a saborear um amor em forma de mulher. Desvairado abraça um soldado com uma granada na mão. Dose extrema de ideologia e amor à sua causa, ao sentido de sua existência. Aliás, essa idéia, de haver um sentido no existir é outra possibilidade que o filme nos enseja. Seu tio então é encarregado por evidenciar o amor em Ernesto ao encorajá-lo diante de sua inexperiência e timidez. A beleza dos encontros de Ernesto com sua amada, aliando sentimento puro em meio à guerra, e os diálogos afetuosos com seu tio, encarrega-se de tornar algo mais leve a questão. “Água nova brotando e gente se amando sem parar...”
Assim, apesar da carga forte, pois se trata de um filme baseado em fatos reais e no qual o diretor dedica à sua mãe desaparecida. Parece-nos que a visão infantil foi deveras acertada, pois ao invés de um filme em que a intenção resta clara, dada a racionalidade dos adultos, nesse caso, a infância do diretor, perdida em meio ao regime, revestiu-se de nitidez na existência que o permitiria compor essa obra de arte.  Nesse caso, é fácil perceber o sem fim de boas idéias que essa película nos encerra. A criança não é a criança que o adulto pensa que ela é. Sua beleza esta na capacidade inventiva, parecida com a que é narrada na música João e Maria de Chico Buarque. Não se pode impor à criança, ela inventa - se Ernesto ou Juan, não interessa. Isso, pois foi Ernesto que, mesmo com as possíveis mazelas que imaginamos existir em uma criança que é submetida a este histórico, quem percebeu sua infância clandestina e resolveu, quando adulto, denunciar tudo que havia ocorrido, mesmo que de maneira clandestina em uma sala escura de cinema.
Bernardo G.B. Nogueira
BH - verão

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