quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Até onde somos nós...

Até onde somos nós...

“Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião, o tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração..”
Chico Buarque



A aventura de sentir os filmes que assistimos e trazer essa sentimentalidade em palavras é uma forma de escolher um caminho. O caminho que trilho agora mesmo enquanto as letras preenchem o branco de possibilidades com as quais o papel em branco nos interpela. Escolhas, fazemo-las? Fazem-nos elas?

Nosso olhar hoje esteve em relação com o filme 360 de Fernando Meirelles, que além de nos fazer passear pelo nosso entorno, fazendo com que nos encontremos conosco, traz também uma trama que espreita as escolhas que diuturnamente somos obrigados a fazer mas que não temos a menor possibilidade de prever, a menor condição de escolher as relações que elas irão trazer e as estradas que iremos trilhar a partir do rumo tomado. Os encontros e desencontros com que as escolhas nos criam, e ainda, as consequências de nossa vida trazidas pelas escolhas alheias são alguns, ou talvez, os melhores momentos que este filme nos empresta.

Para além da beleza de Maria Flor e da elegância de Hopkins, temos uma interessante mostra de cidades como Paris e Londres, conexões que as cidades não têm, mas que as pessoas que as inscrevem na história acabam por estabelecer. Vidas que se cruzam, mas que não se pretendiam cruzar. Cheiros que se misturam e que não mais se irão evaporar. Faces que se confundem e que o resultado não será mais idêntico ao molde pretendido, nem  parecido com a face que ainda não se lavou.

Uma prostituta que tentou ser modelo fotográfica foi modelada pelas escolhas do seu fotógrafo, aliciada, na verdade. A irmã, quase uma Ismênia pós-moderna, não é nada e é tudo ao mesmo tempo, ela não fazia escolhas diretas, ao menos até então. Havia também um casal com um pai de família bem sucedido e que de tanto trabalhar para ser bem sucedido deixou de ser um bom pai e bom marido, quase se tornou um apreciador de prostitutas estrangeiras e de países menos favorecidos financeiramente. O problema com os idiomas e a condição dos imigrantes retratou bem a relação que o capitalismo feroz acaba por fazer com as pessoas advindas de locais que não se dão bem economicamente.

Na mesma trama havia um fotógrafo imigrante que se relacionava com a esposa do marido que deixou de ser um bom marido. O fotógrafo tinha uma namorada que trouxera do Brasil – Maria Flor – que além da beleza, mostrou ali alguns dos problemas que acontecem com imigrantes sonhadores em uma Inglaterra sombria pelo clima e pelas relações interpessoais, ou mesmo pela falta delas. O fotógrafo queria uma carreira exitosa pela influência de sua amante, Maria Flor, queria o sonho de uma vida feliz com seu namorado apaixonado, não realizou, mas fizera suas escolhas.

Em outra trama, uma ex-acoolatra casara-se com um “capanga” de um bem sucedido empresário. O capanga escolheu ser um bom capanga, perdeu a esposa que se apaixonou pelo seu chefe, chefe que depois escolheu despedir a funcionária, ele escolheu seu trabalho. O romance deles estava a atrapalhar seu rendimento. Escolhas suas e dos outros, rumos seus ou dos outros?

Dentro de todas essas vidas em exposição, o diretor de maneira magistral captou a essência do ocaso que nos conduz. A necessidade de reconhecer que nossas escolhas só são realizáveis concretamente em relação com as escolhas alheias, e daí em diante a fortuna do tempo e a poeira do vento se encarregará em conduzir-nos. De alguma forma é um jeito de mostrar que a exatidão que buscamos, a previsão que imaginamos fazer é apenas uma das engrenagens que nos irão moer e dar-nos como resultado de nós mesmos enquanto história, tragédia. Nesse contexto, a história sai do trono da arrogância racional e moderna e nos entrega a um turbilhão de vicissitudes que são completadas pelo olhar do outro, que além de nos completar, de nos inscrever no mundo, são a própria condição de nossa existência.

Os duplos da existência são muito interessantes. A menina que queria ganhar dinheiro fez existir seu fotógrafo e cafetão quando ela se permitiu à prostituição. A irmã só existiu porque a prostituta precisava de alguém para chorar suas noites infinitas nos braços dos amantes sem amor com quem se deitava. O alto empresário criou o capanga que escolhia as prostitutas para as viagens de trabalho. O marido ruim criou a esposa infiel, esta, por sua vez, criou no fotógrafo o sonho de ser bem sucedido, e ao mesmo tempo criou o fim dos sonhos da imigrante brasileira.  O capanga que só o era por vontade de seu chefe, fez com que a esposa ex-alcoolatra perdesse o emprego na busca pelo amor que ele não dava a ela.

Depois de todos esses duplos a questão que encanta no filme se mostra. Pois, o que nos apanha é  que as pessoas não escolhem sozinhas o que sua vida se irá tornar. Assim, mesmo que a liberdade de escolha sempre bata à nossa porta, quem bate, e as pessoas que iremos encontrar depois que entramos por uma ou outra via é que valem/criam a nossa existência. Na verdade, a formação da existência fica descrita de maneira quase alheia ao nosso livre arbítrio, pois sempre estamos cercados de pessoas a também fazerem escolhas, e o encontro é inevitável. Inevitável como nos apaixonarmos pelo próximo rosto com que nos depararemos em uma tarde de sol ou uma manhã com chuva. São as pessoas que fundam as cidades, seus encontros, seus compromissos e também a falta deles.

Quando a menina que foi tirar fotos escolheu tornar-se prostituta, paradoxalmente estreitou os laços daquele marido que havia se tornado ruim, mas que por uma escolha dos outros – isso fica claro no filme -, não conseguiu se relacionar com ela. De outro lado, o alto empresário perdeu a vida também porque contratou seus serviços, ela escolheu ser prostituta, ele escolheu pagar por ela, pagou com a vida. O fotógrafo namorado de Maria Flor ficou sem a amante que voltou a ser uma esposa fiel.  Ficou também sem a namoradinha imigrante que retornou ao Brasil. A viagem dela também foi uma sucessão de escolhas partilhadas, mas que em verdade, a nosso ver, não se encaixou bem na trama, a não ser por Hopkins e seu aprendizado com a menina brasileira. A não ser por vermos claro a brasileiridade a explodir no abraço apertado da menina com o velho ator.

A prostituta fez escolhas, obteve dinheiro, não se sabe o seu destino, mas ela levará as escolha do seu cafetão para sempre na memória de seu corpo gasto. O capanga que viu seu chefe morrer, escolheu não socorrê-lo, uma morte e uma escolha. Depois de escolher que não iria ser mais capanga, escolheu que iria fugir com irmã da prostituta, que casualmente havia conhecido enquanto esperavam: ela a irmã prostituta, ele, o chefe que pagava pelo prazer fatal.

Quando fogem, parece que o diretor mostra sua face. O acaso roda o moinho da nossa existência, e nós, enquanto joguetes e jogadores de nossa própria vida, seguimos nossa sina ou ela nos segue. Sempre devemos escolher uma via. A tragédia do filme fica nítida quando percebemos que a decisão é crítica e trágica, pois ao escolhermos deixamos todas as demais possibilidades para trás e, quando muito, podemos fazer previsões tolas daquilo que virá. Tolas, pois o que virá é o outro, também com todas as suas escolhas, seus benefícios e suas mazelas. Seus amores e suas traições, certezas e imprevisões, face nua e surdez.

Vestir-se com suas escolhas é o que nos resta, até que o encontro nos faça perceber que toda aquela vestimenta não passa de uma fantasia que dura o trágico instante do próximo passo, do próximo olhar e da próxima esquina. O ocaso nos abraça e não nos deixa nunca mais, acalenta nossos passos de maneira sorrateira. Isso tudo enquanto pensamos estar a conduzir nosso caminho. Talvez imaginar a existência seja nossa única saída, ao menos enquanto sonhamos a realidade pode ser mais bela, ou talvez, menos trágica. Tragédia que caracteriza todos os encontros. Mas será que nossa imaginação também não se encontra com o outro? Correr não adianta, pois na roda da vida, o que nos sobra é uma espécie de escravidão, como num círculo infinito que não nos avisa quando começamos a escolher e quando começamos a ser escolhidos. É mesmo de muita lucidez do diretor escolher 360 para narrar estas estórias reais do humano, ora, os gregos tinha o círculo como a figura mais perfeita e é exatamente nele que nossa errância se nos mostra enquanto realidade. Também Platão, grego por excelência, em seu O Banquete conta que existiriam os andróginos, seres que possuíam uma forma circular e que carregavam as características do masculino e do feminino e por isso mesmo tinham muita força e se tornaram arrogantes diante dos deuses, o que levou a estes cortarem os andróginos em dois e daí nasceu o sonho do amor, o sonho de encontrar sua metade. Busca que de alguma forma rege a sinfonia dissonante da história humana, mas que depende das escolhas que sua metade irá fazer: encontrá-la ou padecer à sua procura, está aí a tragédia circular de Fernando Meirelles, 360, 360, 360...

Bernardo G.B. Nogueira
BH – inverno.

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