quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Viandante



Viandante

Logo essa manhã se vai. Daí que resolvo dedilhar algumas palavras. Talvez pra espantar o sono. Talvez uma maneira de inscrever-me nessa manhã. Ou talvez eu esteja mesmo precisando dormir. Mas se vai de longas datas que não tenho sono. Recuso os dias e abraço as noites com afetos inauditos. Passo por elas como quem toca o corpo que se ama. Ela me embala e nos amamos sem parar. Amor assim, sem vaidade. O que não podemos dizer, calamos - disseram isso já em algum lugar.

Retorno à manhã. Seria ela mais uma conseqüência da morte da noite ou estaria, esta tão sorrateira manhã, a querer usurpar em mim a primazia da noite? Sei só que ela traz consigo alguns cheiros que me levam a mim sem que possa deter. Parece quando olhamos uma fruta madura no pé e temos que apanhá-la. Essa estória de traição e fruta madura já deu o que falar.  Mas é de uma suavidade tão grande esse embalo que a canção da manhã, normalmente atrapalhada pela cidade, hoje ressoa em notas finas sob meus olhos cansados.

Ao pensar na hipótese de trair a noite com essa manhã, logo um sentimento de remorso se antecipa. Detenho-me. No entanto, logo no mesmo instante, pois essa coisa de tempo é traiçoeira, a não ser que já tenhamos conversado com o velho Borges e ouvido falar que “o passado é a substância de que é feito o tempo, por isso que este se torna passado imediatamente” - não saberia bem recusar os toques da manhã. Eles sempre passarão, e antes mesmo que a noite bravia exclame, deveria lembrar-se que somos tempo, e por isso, passados. Não daria tempo de esbravejar, já seria desde sempre passado.

Dessa relação entre a manhã e a noite, o tempo tomará conta. Ora uma, ora outra, sucederão enquanto passados que foram. Essa fora uma boa solução, tempo rei. Mas mesmo que esse problema tenha se resolvido, pois ele não nasceu de mim e sim do texto, me quedo ainda irresoluto com o problema desta nova relação com a manhã. Isso até porque ela já se vai indo, e em meu sertão ainda tem uma porta que não foi destrancada. Sei bem que muitas vezes nós trancamos a porta só pra reclamar dela fechada. Se não for coisa de inconsciente, acho que lá está mesmo fechado. Mais uma mirada pela janela. Outra vez a manhã sorri, cândida e silenciosa. Sei não, esse olharzinho esta a me tirar de novo o sono. Logo eu, que nem sou afeito a sonos.

Depois que discutir com a noite sobre essa manhã que é passado, talvez encontre uma chave pra aquela porta que ainda se mantém fechada. Noite agradável e com brisa leve, até luar. Manhã espessa e que entranhou dentro de mim igual cheiro de rosa quando brota, de manhã.  Todas estas sentimentalidades ficam rabiscadas na noite e na manhã, ou na manhã e na noite. Bom que se pode sempre apaixonar, melhor ainda que não dá pra saber se pela manhã ou à noite. E o que ainda sempre restará não sabido é por que a gente se afeiçoa, por que a gente amaldiçoa por sentir manhãs ou noites - mas esse assunto é prosa para outro dia, talvez à tardinha, “nessa hora dos mágicos cansaços”, como poetaria Florbela Espanca.

A manhã que me fez dedilhar palavras já esta indo embora, já tem barulho a incomodá-la e cheiros que se misturam com sua tez. O passado que ela é vai se juntar ao tempo pra formar a noite que virá. Devo dormir. Quiçá haja um sonho em que a noite e a manhã apareçam juntas pra me contar segredos. Será que elas saberiam o que é o tempo?

Bernardo G.B. Nogueira
Conselheiro Lafaiete – verão 2013.

Um comentário:

  1. Das portas fechadas posso dizer que as chaves podem estar mais perto do que pressupomos apesar de dentro de nós ser um lugar de tamanho infinito...
    Belo texto!

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