Agora
você saberá de tudo...
É realmente uma violência a necessidade de escrever
um texto coerente quando acabamos por perceber a incoerência que estamos
envolvidos enquanto humanos. O filme, “Uma canção de amor para Bobby Long”, nem
tão novo, tampouco velho, me fez lembrar o Belchior quando se declara “muito jovem pra morrer. E velho pro rock 'n' roll!”. De
fato, e inevitavelmente, uma reflexão sobre o tempo, nossa relação com ele e as
circunstâncias que porventura envolvem olhar pra trás. Há também em meio a esse
filme uma boa candência para pensarmos sobre o amor, suas formas de mostração,
nossa parca condição de senti-lo e pior ainda, a tragédia que é quando
percebemos que a única saída seria ele, mesmo que não dê mais tempo.
Nesta escrita não me irei remeter Às
passagens do filme, são por demais eloquentes para uma suposta tentativa de transcrição
em palavras. Tentarei apenas deixar escrito aquilo que é inevitável nesse
encontro. Encontro que tinha no entorno toda a magia musical de New Orleans,
suas fantasias, suas estrelas decadentes e seus sonhos. Há também de ser
inevitável a literatura que é a veia do filme. No entanto, o que mais toma
nosso sentimento é a verdade com que a literatura nos revela, e a menoridade
com que a encaramos. Dizer que há distância entre a realidade e a literatura é
viver de olhos bem fechados, alias, é quase não viver. Uma morte que respira,
talvez.
Assim, e por isso mesmo, é que
parece quase impossível tirar do lugar o cursor para escrever isso aqui. Então,
se é tão difícil, melhor escrever de mim. Pois, quando o filme se encerra, a
frase que me toma é uma só: “Como pode a gente ver nossa vida passar por uma
tela e ficarmos ao mesmo tempo assistindo?” Nesse instante, é necessário lembrar
o que é dito sobre Long e entender a diferença entre existências que são escritas
por si e existências que simplesmente se deixam escrever, inertes e mortas.
Bobby Long atravessou a vida dentro de um livro imaginário. Livro que ele
compunha a cada gole a mais e a cada atitude malfadada. Quase um herói trágico,
que sabedor de sua tragédia, se entrega a ela para cumprir sua vida. Mas o que
é instigante, é a forma como isso se dá. Ou seja, por mais que de alguma forma
o cenário se mostre decadente, sobretudo para os padrões informados nos dias de
hoje, que são tempos tristes, tempos em que, por exemplo, as pessoas querem se curar de
suas fantasias e não percebem que isto é a única forma de em algum momento elas
poderem contar sua história. Tempos em que a entrega é permeada por regras e
modelos, e por isso mesmo não existem entregas, não existem histórias. Não
existe vida com literatura. O Vinícius de Moraes entenderia bem essa crítica.
Digo isso por me lembrar agora que Drummond, o maior poeta para muitos, disse
que o poetinha foi o único poeta que viveu como tal. Acho que Long também. E por supuesto, também Florbela Espanca.
Nessa trilha desgarrada do que seria
o real, nasceram tantas coisas maravilhosas que ousaria enfrentar estes padrões
e aconselhar um pouco mais de Long. A despeito de um lar perfeito e uma família
estruturada, houve uma amizade inquebrantável, um sonho sem fim, um livro
infinito e uma poesia que era o próprio ar. Claro que são escolhas, e entre o
que virá a partir delas, o que é ocaso, e a morte, resta pouco de nós mesmos.
Long sabia disso, por isso queria o rio. Queria mais uma dose e queria citar
mais um escritor. Os livros guardam em alguma medida, a verdade inscrita da
face mais humana. E exatamente por ser a face mais humana, é também a mais
terrível e a mais poética também. Assim, ao ver-se numa vida que é narrada por
escritores, e o pior, crer nela, parece quase uma profissão de fé, ingênua e
linda como uma criança. Negar uma sabedoria asséptica é outro mote que nos toma
nesse filme. Porque saber por saber, é como disse o poetinha: “é como amar uma
mulher só bela, e daí?” De verdade mesmo é viver essa fantasia. Acreditar de
maneira infantil que naquelas palavras há uma vida na qual se pode ler a sua
mesma.
Viver na fantasia é uma crítica que
um determinado seguimento de pessoas recebe comumente. Essa crítica vem de uma
outra classe de pessoas que parece não saber a diferença entre, poesia,
filosofia e arte. Aliás, diferença não, mas apenas não conseguem perceber que
cada uma dessas maneiras de existir guarda sua peculiaridade, e então, a cada
vez que enxergam um poeta, um filósofo ou um artista, acabam por dizer que são pessoas
que vivem com a cabeça na lua, que filosofam muito. A pergunta que fica é: qual
seria a diferença entre um ser humano e os animais que não têm noção de sua existência,
senão a capacidade de se questionar (filosofia), a possibilidade de sentir a
pulsação da realidade (poesia) e de criar essa mesma realidade (arte)?
Realmente, Long nos dá bastantes lições existenciais. Sobre a finitude, o infinito,
e com se portar quando as imposições artificiais perdem para o amor.
Não seria hora de falar de amor.
Esse tema tão desgastado e tão necessário é difícil. Difícil talvez porque
sempre acabamos por associar amor à relação entre duas pessoas. No entanto,
parece que Long é uma espécie de Modigliani, ou seja, naquele, o amor se mostra
enquanto persegue a vida com olhos cheios de flores e as mãos cheias de poesia
e literatura, e este, persegue a mesma vida com as mãos cheias de tinta, mas
não menos ávidas por amar. Então, o amor que permeia a existência, pode sim se
mostrar no sorriso de uma mulher. No entanto, parece que nesse caso o amor é
pela existência enquanto humano. Mas é claro que o filme nos mostra, e os
livros também, que isso não se resume Às fórmulas estéticas e saudáveis que
temos hoje. “Há que se cuidar da vida”, mas não imagino que esse cuidado era
para Long o que se vê por ai. Esse cuidado é em saber-se menor, saber-se maior,
só para poder inventar.
As mazelas virão. Mas as estações
são assim também. Da mesma forma como um capítulo sucede o outro, e aquela
tragédia pode se transformar por inteiro. E assim é a vida também, mesmo que
tenhamos regras a priori a dizer-nos
como, quando e porquê, Acreditar na fantasia de um livro é sim sair da
realidade. Sair de uma realidade imposta e impostora. Pois não há nada mais que
nossa imaginação do que ela de fato é. Criar na vida é maneira simples de
existir. Criar como o autor de uma literatura, como o compositor de uma canção
ou como o poeta de um verso. De outro lado, há uma outra maneira, que se diz
mais convencional e muito menos dizível de humanidade. Digo aqui sobre a previsibilidade
com que queremos tocar o tempo e a vida. Tentativas vãs, claro, mas sempre
tentadas. Pois uma vez que não acreditamos em nossa fantasia, deixamos nos
entreter por uma fantasia criada pelo outro, e ai, uma existência sim, contudo,
decaída. Falaciosa. Fantoche.
A ciranda da vida quis que Long deixasse
esse tempo. Assim como todos os outros pecadores um dia deixarão. No entanto,
se “o coração é um caçador solitário”, quiçá nos livros ele encontrará algo,
penso que não. Long então estaria equivocado ao utilizar-se de tantas citações.
Mas de outro lado, penso que a história não vai bem por aí. As citações incessantes
eram apenas um aporte para aquilo que estava a construir a cada passo, a cada
deslize, cada pranto e cada decepção. Escrevia com sua errÂncia o livro de sua
vida, e como fora uma vida de verdade, sem cortes e sem cenas dignas de
narrativas espetaculares, precisava citar, pois entendemos o que fizemos só
depois que olhamos pra trás, e se acaso nossa fantasia não se realizar, não
enxergamos nada. Salvo se alguém cantar “uma canção de amor para Bobby Long”.
Bernardo G.B. Nogueira
Conselheiro Lafaiete – verão
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