Profanação
“Viver é muito
arriscado”. Esta frase, que compõe mais uma das miragens das Veredas do Sertão
de Guimarães Rosa, foi a maneira mais precisa que encontrei para me expressar
sobre o filme que quer retratar a vida e alguma coisa da obra de Caravaggio (Michelangelo
Merisi). Película do diretor Angelo Longoni, a obra mostra muitas questões que merecem um
momento de reflexão. Vamos a ele.
Em
muito me impressiona dois artistas, coincidentemente, pintores. Um, Modigliani,
outro, Caravaggio. As coincidências sob minha perspectiva não se encerram em
uma mesma nacionalidade. Na verdade, o que a mim me impele ver relação entre os
dois artistas, supõe a transcendência e a intensidade com que ambos viveram.
Sem completar quatro décadas de existência, tanto Amedeo, quanto Michelangelo,
insultaram a burocracia que os envolvia, cada um o seu tempo. No entanto, o
insulto não aparecia apenas com a relação entre sagrado e profano de
Caravaggio, nem, tampouco, apenas na nudez de Dedo (apelido da infância de Modigliani).
A vida imensa de ambos, a necessidade de estar sempre à beira de uma criação,
fez com que estas duas figuras aparecessem como reveladores do novo, como
artistas de fato. Que dizem do novo sem dizer, apenas vivenciam em si mesmos. E
a vida de Caravaggio, cercada por atritos de toda ordem é que nos irá ocupar um
pouco. Junto disso, uma alusão à forma de compor sua obra, sua vida e sua
tragédia. Modigliani, apesar de estar, em nossa concepção, a par e passo com o
pintor do “Tenebrismo”, é este último nos ocupa agora a retina e o coração.
E
assim, como são inevitáveis as coisas do coração, também é inevitável não viver
Caravaggio. No filme podemos perceber como a vida atravessa o artista desde a
carne até o mais profundo dos devaneios. Essa profusão de sentidos aflorados
perturba a existência de Caravaggio, e então, a arte é a única maneira que o
homem encontra de suportar a realidade. Assim, bem à maneira do que nos ensina
Nietzsche, percebemos a arte de Caravaggio a coroar a possibilidade mesma de
existir do homem. Contudo, a sua grande exposição, junto de obras como Flagelação de Cristo ou A morte da virgem, dentre vários
clássicos, foi sua própria existência.
A
despeito da errância que o demovia enquanto homem de confusões. Parece-nos que
há um ponto crucial na percepção da vida do artista. Isso fica claro se
tivermos em conta a hermenêutica que Giorgio Agamben confere ao termo
profanação. Em seu livro homônimo, o autor italiano nos ensina que profanar
algo é retirá-lo do altar em que não é passivo de ser destruído, criticado. Ou
seja, profanar seria colocar algo a nu, criticá-lo, mudá-lo ou apenas,
apreciá-lo sob uma perspectiva não sacralizada, não ideologizada. Isso permite
ao mesmo tempo, uma reinvenção, e possibilita ao humano a realização de uma sua
característica própria: a incompletude e
sua estranheza face ao real. O que lhe confere, se quisermos, uma necessidade
de criar. Quase como o ar, a invenção é alimento que realiza a humanidade no
humano.
Assim,
sobre a relação de Caravaggio com a ideia de profanação, percebemos que foi um
dos artistas que mais realizaram esse ideário. Pois, se de um lado, o pintor se
valia das escrituras sagradas para alimentar sua tela, de outro, bebia das ruas
e na sua sujeira, o líquido que inspirava suas criações. Essa relação
sagrado-profano é evidente quando percebemos figuras reais a compor os rostos
de figuras bíblicas. Nesse caso, identificamos a profanação de Caravaggio, que
ousa ler com outros olhos a realidade bíblica e insere realidade onde há fé, e
ao mesmo tempo, retira a leviandade das ruas quando coloca seus rostos em obras
que traduzem momentos sagrados.
Na
sua vida, a profanação reluz quando Caravaggio, para além de suas telas, luta
contra inimigos de todas as ordens. Quando não sucumbe às regras impostas pela
igreja à época. Quando faz jorrar de dentro de si toda a sua paixão. Essas
ações, que turbam a ordem, entendemos como uma mostra evidente da
impossibilidade de um artista dessa ordem existir sem que essa trajetória
esteja pautada por momentos de arrebatamento como os que vimos explicitados por
todo o o filme. Diriam temperamento. Digo inevitável conduta diversa, pois, o
que ali esta a alimentar a existência de Caravaggio é a paixão pela vida, que
buscada de maneira tão valente, acaba várias vezes por mostrar a fragilidade do
humano - e o que é mais artístico e humanamente real que o paradoxo?
Caravaggio
oscilou entre um cavaleiro com sua armadura e um pedinte qualquer, louco e faminto.
A tragédia dessa dubiedade é marca deste personagem. Capaz de se apaixonar por
um traço perfeito em forma de mulher, ao mesmo tempo em que é capaz de cravar a
espada no peito de um malfeitor. Herói e bandido. Para deus por intermédio do
diabo. O duplo que diz da existência de Caravaggio é o mesmo duplo que esta em
suas pinturas, as quais têm um fundo obscuro a contrastar com a luz intensa.
Luz divina, escuridão do inferno. Deuses e homens a ser relacionar. Esta ai a
abertura profana que Caravaggio abre ante os olhares pouco iluminados naquele
tempo. Os traços de Caravaggio, tanto na vida, regada a excessos, quando na
arte, ornada por construções precisas, faz desse pintor um verdadeiro artífice.
Inventor de sua própria arte de existir. Em alguns momentos comédia, noutros tantos,
tragédia, mas em todos eles a sua própria magia, sua própria cor.
A
longevidade é característica quase que risível se levarmos em conta a
intensidade com que a vida de Caravaggio transcorria. Serviu aos papas, foi
condenado e absolvido por eles mesmos. Traiu e foi traído. Cuspiu e foi
cuspido. Amou sempre e sem distinção. Foi odiado.Empunhou espadas e foi ferido.
Matou. E aqui, não poderia afirmar que foi morto. Pois que a tragédia de
Caravaggio só a ele caberia escrever. Assim, viveu como um herege dentro da
igreja e como um sacristão nos bordeis e nas ruas. Fez da cena bíblica sua
morada. Lá dentro criou sua cor, sua luz e a ausência dela. Convidou os
personagens que quis. Manteve a porta sempre aberta. A porta de um corpo e de
uma alma que foram atravessados pela vida que pulsava dentro de si. Vida que
enxergava divindade no homem. Vida que trouxe pessoas comuns para dentro dos
quadros. Vida que pintou toda a beleza e toda a devassidão dos homens. Perceber
toda essa imensidão e mistério que envolvem o humano não seria o bastante.
Perigoso mesmo é senti-la. Pois uma vez que isso ocorre, realmente o viver
torna-se muito arriscado. Convém morrer, ou pintar a morte.
Bernardo
G.B. Nogueira
Conselheiro
Lafaiete – verão – 2013.
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