terça-feira, 17 de julho de 2012

O tempo e os olhos


O tempo e os olhos

Acho que hoje vou falar do tempo. Mas não pretendo me demorar naquelas coisas chatas e de lugar comum com que algumas pessoas se fartam: “O tempo está a correr.” “Não conseguimos acompanhar o tempo.” “Parece que o tempo está a «andar» mais depressa.” “Nossa, meu dia deveria ter 48 horas”. São infinitos os reclames. Assim como é infinito o tempo. Assim como podem ser infinitas as possibilidades com que percebemos esse tempo. A forma como o apreendemos. O jeito como fazemos com que ele deixe de ser tempo e se torne nós mesmos. Meu parceiro, Marcos Assumpção, entendeu bem essa coisa do tempo. Compôs ele um álbum que se chama “O tempo em nós”. Convido o leitor a conhecer tanto o artista quanto o álbum. Conhecer o tempo? Aí já é outra tarefa. Mais árdua. Mais impossível. Não menos interessante, talvez por essa sua face inapreensível.

Comecei a dizer que iria falar sobre o tempo. Tento agora não me perder no tempo e me entregar àquela pressa que mencionei. Senão aí eu vou falar que precisaria de mais tempo para escrever esse texto. Escrita que não pode ficar presa ao tempo. O que é já impossível. Sempre estamos no tempo. Presos ou livres. Esta é a questão. Tornar-se escravo e falar dele como seu patrão, ou inventá-lo, ao invés de aceitar inerte sua ditadura. Esse pensamento pode ser visto sob a perspectiva de uma existência dentro do capitalismo do consumo em que vivemos. Essa histeria, meus amigos psicólogos e psicanalistas me perdoem o uso do termo, está associada à forma como nos portamos diante deste vilão, ou deste namorado, ou namorada, que é o tempo. Tentarei explicar a distinção entre tempo vilão e tempo-namorado ou namorada.

A ideia do tempo vilão está associada à ideia de querer viver como mocinho. Isso, muito comum ao modelo de vida capitalista norte-americano e que fica evidente em muitas das produções cinematográficas deste país. Essa vida também está de alguma forma presente na personagem Bovary do romance de Flaubert. Vida em que o problema é o outro. O marido que não realiza a esposa, neste último caso. O vilão que não permite ao mocinho uma vida tranquila e virtuosa. O interessante é que se não houvesse o um, o outro, nem sequer existiria. Mas sobre esse assunto não falarei aqui. Opostos e paradoxos são quase uma forma de constituição do humano.

No caso do mocinho, criamos uma forma estranha de nos relacionarmos com nossa própria existência, pois acabamos por entregá-la “de bandeja”, isso porque quando o tempo é o vilão, nós nem somos o mocinho, pois este é o oposto do vilão, e o oposto do tempo seria o não-tempo, o que não existe. Mas que precisa ser inventado. No entanto, essa não é a conclusão que chego nesse tipo de tempo. Aqui o sujeito assim se coloca não pela sua forma de existir, ao contrário, existe pela sua não-existência. Explico-me:

O tempo quando é vilão, age ele mesmo nessa direção. Furta das pessoas uma forma de se colocar no mundo e instaura sua existência à revelia. Em um processo, no poder judiciário, o réu que não comparece para se defender, é considerado revel, ou seja, é julgado sem que esteja ali a se defender. O ser humano que tem o tempo como vilão é julgado em sua vida da mesma maneira. Simplesmente por não tomar as rédeas ele fica ali dando vida ao tempo e a utilizar-se de uma figura de linguagem, a prosopopeia ou pessoalização - que significa a atribuição de ações, sentimentos animados a seres inanimados – e a ver o tempo a agir como se humano fosse. Daí que o tempo corre, voa, anda depressa, devagar - digo aos amigos filósofos que sei bem da diferença entre o tempo medido e o tempo sentido, e todas as consequências que isso tem, meu assunto agora não é explicar essa distinção.

Então, de prosopopeia em prosopopeia, fica o ser humano como uma marionete de si mesmo. Marionete do tempo em nosso caso. E o pior, as pessoas convivem com essa figura de linguagem como se fosse algo que de fato existisse. Não existe. Isso fica de certa forma engraçado. Pois, a questão da linguagem é complexa, estamos e existimos nela. E nossa relação com a linguagem é mesmo constituidora de nós mesmos. Parece que essa minha ideia tem mesmo procedência. Ora, é só lembrar que um filme que fala de zumbis foi gravado em um shopping center. E como nessa forma zumbi de existir não há percepção de tempo, essa figura de linguagem é o que resta. Resta agora, às pessoas que se relacionam com o tempo como vilão, sentirem-se aprisionadas pelo tempo. O que não é diferente do que ficar preso no shopping. O que é o mesmo que estar preso à forma capital consumista de existir. Essa forma impede a criação. Portanto, o vilão que nos aprisiona nunca deixará de ser vilão. Nesse sentido, nunca deixaremos de ser marionetes, zumbis ou coisa do gênero, Continuaremos nessa caverna. Aliás a metáfora da caverna também poderia ser usada aqui. Mas isso poderia cansar o leitor e o tempo poderia reclamar também.

A outra forma de se relacionar com o tempo é o que chamei de tempo-namorado ou namorada. Ao invés de temer o vilão ou “prosopopeiá-lo”. Talvez devêssemos namorar o tempo. Tê-lo como namorada. Digo namorada não porque é do homem. Mas porque é mais bonito do que dizer namorado. Então, miremos: Enquanto diuturnamente as pessoas se desesperam com as prosopopeias que elas próprias criam. De alguma forma, seria mais criativa uma forma namorada de ver o tempo. Ver o tempo como uma namorada é necessariamente estar enamorado dele. Como diria o poetinha, tem que ser de um tempo só, não de vários. Assim, namorar o tempo e se namorar por ele é cumprir a ideia de que a cada olhar que ele nos direciona, a cada carícia e cada beijo, acabamos por nos envolver e nos deixarmos criar por ele, ou por ela. Aqui estou a dizer que o tempo-namorada é o que nos liberta da prisão das necessidades da vida capitalista. Ou seja, aqui não consumimos o tempo. Não o medimos e nem queremos aumentá-lo ou diminuí-lo, cabe aqui inventá-lo. Inventar o tempo é estar apaixonado por ele. É então, namorar com ele. Isso é mais interessante e mais criativo ao menos, do que viver como um ser humano que não se percebe, e que histericamente tenta acertar os ponteiros externos, uma clara mostra de seu desarranjo interno.

Quis escrever sobre o tempo. Acho que acabei escrevendo sobre uma forma de viver. Viver no tempo ou viver o tempo. Quando namoramos não devemos tentar nos apropriarmos do outro. O tempo e o outro estão em nós. Assim como o contrário também é certo. É uma criação dialética em que nos formamos, amamos, ou não. Então, é interessante pensar o tempo, sempre. Pois, ao pensá-lo, pensamos a nós mesmos. E, de outro lado, essas duas formas são duas maneiras de viver. Uma, na histeria de frear o irrefreável e captar o que escorre pelas mãos. Outra, sob os olhares enamorados de um amante. Que cuida de reinventar seu amante para que invente a si. Sem amarras e sem prosopopeias. Ao fim destas ideias, parece que o olhar é mesmo o responsável por isso tudo. Aliás, não é o olhar em si, mas a maneira como nos relacionamos com ele. Uns passam correndo e não são esquecidos. Outros param diante de nós e mesmo assim não são percebidos. Olhar e tempo. Não deveria ter me metido nesse texto. Não podemos prever nem prender o tempo, assim como, não podemos prever nem prender os olhares que nos namoram.

Bernardo G.B. Nogueira
Conselheiro Lafaiete – inverno.



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