O tempo e os olhos
Acho que hoje vou falar do tempo.
Mas não pretendo me demorar naquelas coisas chatas e de lugar comum com que
algumas pessoas se fartam: “O tempo está a correr.” “Não conseguimos acompanhar
o tempo.” “Parece que o tempo está a «andar» mais depressa.” “Nossa, meu dia
deveria ter 48 horas”. São infinitos os reclames. Assim como é infinito o
tempo. Assim como podem ser infinitas as possibilidades com que percebemos esse
tempo. A forma como o apreendemos. O jeito como fazemos com que ele deixe de
ser tempo e se torne nós mesmos. Meu parceiro, Marcos Assumpção, entendeu bem
essa coisa do tempo. Compôs ele um álbum que se chama “O tempo em nós”. Convido
o leitor a conhecer tanto o artista quanto o álbum. Conhecer o tempo? Aí já é
outra tarefa. Mais árdua. Mais impossível. Não menos interessante, talvez por
essa sua face inapreensível.
Comecei a dizer que iria falar
sobre o tempo. Tento agora não me perder no tempo e me entregar àquela pressa
que mencionei. Senão aí eu vou falar que precisaria de mais tempo para escrever
esse texto. Escrita que não pode ficar presa ao tempo. O que é já impossível.
Sempre estamos no tempo. Presos ou livres. Esta é a questão. Tornar-se escravo
e falar dele como seu patrão, ou inventá-lo, ao invés de aceitar inerte sua
ditadura. Esse pensamento pode ser visto sob a perspectiva de uma existência
dentro do capitalismo do consumo em que vivemos. Essa histeria, meus amigos
psicólogos e psicanalistas me perdoem o uso do termo, está associada à forma
como nos portamos diante deste vilão, ou deste namorado, ou namorada, que é o
tempo. Tentarei explicar a distinção entre tempo vilão e tempo-namorado ou
namorada.
A ideia do tempo vilão está
associada à ideia de querer viver como mocinho. Isso, muito comum ao modelo de
vida capitalista norte-americano e que fica evidente em muitas das produções
cinematográficas deste país. Essa vida também está de alguma forma presente na
personagem Bovary do romance de Flaubert. Vida em que o problema é o outro. O
marido que não realiza a esposa, neste último caso. O vilão que não permite ao
mocinho uma vida tranquila e virtuosa. O interessante é que se não houvesse o
um, o outro, nem sequer existiria. Mas sobre esse assunto não falarei aqui.
Opostos e paradoxos são quase uma forma de constituição do humano.
No caso do mocinho, criamos uma
forma estranha de nos relacionarmos com nossa própria existência, pois acabamos
por entregá-la “de bandeja”, isso porque quando o tempo é o vilão, nós nem
somos o mocinho, pois este é o oposto do vilão, e o oposto do tempo seria o
não-tempo, o que não existe. Mas que precisa ser inventado. No entanto, essa
não é a conclusão que chego nesse tipo de tempo. Aqui o sujeito assim se coloca
não pela sua forma de existir, ao contrário, existe pela sua não-existência.
Explico-me:
O tempo quando é vilão, age ele
mesmo nessa direção. Furta das pessoas uma forma de se colocar no mundo e
instaura sua existência à revelia. Em um processo, no poder judiciário, o réu
que não comparece para se defender, é considerado revel, ou seja, é julgado sem
que esteja ali a se defender. O ser humano que tem o tempo como vilão é julgado
em sua vida da mesma maneira. Simplesmente por não tomar as rédeas ele fica ali
dando vida ao tempo e a utilizar-se de uma figura de linguagem, a prosopopeia
ou pessoalização - que significa a atribuição de ações, sentimentos animados a
seres inanimados – e a ver o tempo a agir como se humano fosse. Daí que o tempo
corre, voa, anda depressa, devagar - digo aos amigos filósofos que sei bem da
diferença entre o tempo medido e o tempo sentido, e todas as consequências que
isso tem, meu assunto agora não é explicar essa distinção.
Então, de prosopopeia em
prosopopeia, fica o ser humano como uma marionete de si mesmo. Marionete do
tempo em nosso caso. E o pior, as pessoas convivem com essa figura de linguagem
como se fosse algo que de fato existisse. Não existe. Isso fica de certa forma
engraçado. Pois, a questão da linguagem é complexa, estamos e existimos nela. E
nossa relação com a linguagem é mesmo constituidora de nós mesmos. Parece que
essa minha ideia tem mesmo procedência. Ora, é só lembrar que um filme que fala
de zumbis foi gravado em um shopping
center. E como nessa forma zumbi de existir não há percepção de tempo, essa
figura de linguagem é o que resta. Resta agora, às pessoas que se relacionam
com o tempo como vilão, sentirem-se aprisionadas pelo tempo. O que não é
diferente do que ficar preso no shopping. O que é o mesmo que estar preso à
forma capital consumista de existir. Essa forma impede a criação. Portanto, o
vilão que nos aprisiona nunca deixará de ser vilão. Nesse sentido, nunca
deixaremos de ser marionetes, zumbis ou coisa do gênero, Continuaremos nessa
caverna. Aliás a metáfora da caverna também poderia ser usada aqui. Mas isso
poderia cansar o leitor e o tempo poderia reclamar também.
A outra forma de se relacionar
com o tempo é o que chamei de tempo-namorado ou namorada. Ao invés de temer o
vilão ou “prosopopeiá-lo”. Talvez
devêssemos namorar o tempo. Tê-lo como namorada. Digo namorada não porque é do
homem. Mas porque é mais bonito do que dizer namorado. Então, miremos: Enquanto
diuturnamente as pessoas se desesperam com as prosopopeias que elas próprias
criam. De alguma forma, seria mais criativa uma forma namorada de ver o tempo.
Ver o tempo como uma namorada é necessariamente estar enamorado dele. Como
diria o poetinha, tem que ser de um tempo só, não de vários. Assim, namorar o
tempo e se namorar por ele é cumprir a ideia de que a cada olhar que ele nos
direciona, a cada carícia e cada beijo, acabamos por nos envolver e nos
deixarmos criar por ele, ou por ela. Aqui estou a dizer que o tempo-namorada é
o que nos liberta da prisão das necessidades da vida capitalista. Ou seja, aqui
não consumimos o tempo. Não o medimos e nem queremos aumentá-lo ou diminuí-lo,
cabe aqui inventá-lo. Inventar o tempo é estar apaixonado por ele. É então,
namorar com ele. Isso é mais interessante e mais criativo ao menos, do que
viver como um ser humano que não se percebe, e que histericamente tenta acertar
os ponteiros externos, uma clara mostra de seu desarranjo interno.
Quis escrever sobre o tempo. Acho
que acabei escrevendo sobre uma forma de viver. Viver no tempo ou viver o
tempo. Quando namoramos não devemos tentar nos apropriarmos do outro. O tempo e
o outro estão em nós. Assim como o contrário também é certo. É uma criação
dialética em que nos formamos, amamos, ou não. Então, é interessante pensar o
tempo, sempre. Pois, ao pensá-lo, pensamos a nós mesmos. E, de outro lado,
essas duas formas são duas maneiras de viver. Uma, na histeria de frear o
irrefreável e captar o que escorre pelas mãos. Outra, sob os olhares enamorados
de um amante. Que cuida de reinventar seu amante para que invente a si. Sem
amarras e sem prosopopeias. Ao fim destas ideias, parece que o olhar é mesmo o
responsável por isso tudo. Aliás, não é o olhar em si, mas a maneira como nos
relacionamos com ele. Uns passam correndo e não são esquecidos. Outros param
diante de nós e mesmo assim não são percebidos. Olhar e tempo. Não deveria ter
me metido nesse texto. Não podemos prever nem prender o tempo, assim como, não
podemos prever nem prender os olhares que nos namoram.
Bernardo G.B. Nogueira
Conselheiro Lafaiete – inverno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário