domingo, 17 de março de 2013

Viver é invenção



Viver é invenção

“Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”
Che

Dentre a infinitude de variáveis que constituem a ontologia do humano, uma das mais aprazíveis, sem dúvida, é a inconstante da imaginação. As crianças têm nessa realidade fantástica da imaginação seu local natural de vivência. A existência da criança é constituída por um mundo sempre inventado, incessantemente novo, a cada piscada, a cada nova descoberta. Sobre essa realidade imaginária e seus desenvolvimentos se desenrola a trama de “Indomável Sonhadora”. Filme que trouxe como atriz principal uma talentosíssima criança (Quvenzhané Wallis), que dentro de um cenário com fotografias que oscilam entre o selvagem e o belo, narra uma estória de fantasia e resistência, imaginação e autenticidade. Um realismo fantástico, que mistura natureza e questões existenciais, contribui para aumentar a carga reflexiva trazida no filme.

Esses são os elementos que o filme do jovem diretor (Benh Zeitlin) nos leva a refletir. Hushpuppy, a personagem principal, vive com seu pai Wink (Dwight Henry) de maneira pobre, hostil, suja, com hábitos praticamente selvagens e uma constante lembrança da mãe que desaparece de maneira inexplicável e deixa na memória da criança um espaço aberto para construções fantasiosas. A dificuldade para suportar as investidas da natureza contra o solo em que vivem, o amor pela terra, o amor e a vontade de se inscreverem na história, criam uma existência trágica para os dois.

De alguma forma podemos reconhecer no filme um pouco dos elementos dionisíacos que compõem o trágico para o filósofo Nietzsche, ora, a selvageria, a inevitabilidade, a agressividade e as entranhas do humano são momentos trazidos para dentro do expectador. A face mais despida da existência é mostrada nas relações do pai com a filha. A maneira como enxergam a sua condição e a maneira como reagem a ela, parece-nos exatamente a força que move o dionisíaco, aquilo que não é controlado e nem pode ser formatado. Os dois não abandonam o local hostil em que vivem. Essa seria a tragédia de sua existência, mas, ao mesmo tempo, uma única forma de estar no mundo. O herói trágico é aquele que caminha para sua destruição. Quando o pai não abandona a “banheira”, mesmo sob a possibilidade de perecer ali, mostra autenticidade, mostra vontade de inscrever-se, mostra disposição para a vida, e também para a morte. Mostra, portanto, que é vida o que é inevitável.

A relação direta da criança com a natureza, simbolizada em suas falas com os animais, nos faz pensar necessariamente como as trocas humanas que hoje se tornaram deveras plastificadas, quase irreais, cada vez mais formais, distantes da tragédia que é a aventura do homem. Distantes da imaginação, distantes, portanto, do real. Assim, Hushpuppy nos carrega por um mundo seu: lindo e aterrorizante, de amor, de ódio e de saudade. Mostra o quão rasos tornamo-nos quando deixamos de sonhar. O quão pequenos e medrosos quando deixamos de lutar. E o mais interessante, mistura em seus olhos, a leveza da criança e a fortaleza para viver em sua própria fantasia.

Assim, quando os dois se relacionam com o “mundo real”, afastado de sua realidade fantástica, a criança descobre um mundo em que “quando as pessoas ficam doentes são ligadas na parede”. Aliás, essa fala é uma das que simboliza as reflexões que quisemos trazer aqui. Em primeiro a criança, livre de todo o peso da idade adulta, cria sem peias, portanto, desloca-se de uma possível realidade imposta. Na verdade, quando ela e o pai opõem-se a deixar o local mesmo sob o risco de morrerem afogados pelas cheias, estão a inventar uma existência própria. O sonho de escreverem sua história e não serem escritos por ela. O sonho de não rendição, de oposição ao que supostamente seria o normal. Coisas de quem faz revolução. Coisa de quem imagina. Coisas de quem peleia pela vida, mas que “sente com inteligência e pensa com emoção”

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