Viver é invenção
“Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”
Che
Dentre a infinitude de variáveis que constituem a
ontologia do humano, uma das mais aprazíveis, sem dúvida, é a inconstante da
imaginação. As crianças têm nessa realidade fantástica da imaginação seu local
natural de vivência. A existência da criança é constituída por um mundo sempre
inventado, incessantemente novo, a cada piscada, a cada nova descoberta. Sobre
essa realidade imaginária e seus desenvolvimentos se desenrola a trama de “Indomável
Sonhadora”. Filme que trouxe como atriz principal uma talentosíssima criança (Quvenzhané
Wallis), que dentro de um cenário com fotografias que oscilam entre o selvagem
e o belo, narra uma estória de fantasia e resistência, imaginação e autenticidade.
Um realismo fantástico, que mistura natureza e questões existenciais, contribui
para aumentar a carga reflexiva trazida no filme.
Esses
são os elementos que o filme do jovem diretor (Benh Zeitlin) nos leva a
refletir. Hushpuppy, a personagem principal, vive com seu pai Wink (Dwight
Henry) de maneira pobre, hostil, suja, com hábitos praticamente selvagens e uma
constante lembrança da mãe que desaparece de maneira inexplicável e deixa na
memória da criança um espaço aberto para construções fantasiosas. A dificuldade
para suportar as investidas da natureza contra o solo em que vivem, o amor pela
terra, o amor e a vontade de se inscreverem na história, criam uma existência
trágica para os dois.
De
alguma forma podemos reconhecer no filme um pouco dos elementos dionisíacos que
compõem o trágico para o filósofo Nietzsche, ora, a selvageria, a
inevitabilidade, a agressividade e as entranhas do humano são momentos trazidos
para dentro do expectador. A face mais despida da existência é mostrada nas
relações do pai com a filha. A maneira como enxergam a sua condição e a maneira
como reagem a ela, parece-nos exatamente a força que move o dionisíaco, aquilo
que não é controlado e nem pode ser formatado. Os dois não abandonam o local
hostil em que vivem. Essa seria a tragédia de sua existência, mas, ao mesmo
tempo, uma única forma de estar no mundo. O herói trágico é aquele que caminha
para sua destruição. Quando o pai não abandona a “banheira”, mesmo sob a
possibilidade de perecer ali, mostra autenticidade, mostra vontade de
inscrever-se, mostra disposição para a vida, e também para a morte. Mostra,
portanto, que é vida o que é inevitável.
A
relação direta da criança com a natureza, simbolizada em suas falas com os
animais, nos faz pensar necessariamente como as trocas humanas que hoje se
tornaram deveras plastificadas, quase irreais, cada vez mais formais, distantes
da tragédia que é a aventura do homem. Distantes da imaginação, distantes,
portanto, do real. Assim, Hushpuppy nos carrega por um mundo seu: lindo e
aterrorizante, de amor, de ódio e de saudade. Mostra o quão rasos tornamo-nos
quando deixamos de sonhar. O quão pequenos e medrosos quando deixamos de lutar.
E o mais interessante, mistura em seus olhos, a leveza da criança e a fortaleza
para viver em sua própria fantasia.
Assim,
quando os dois se relacionam com o “mundo real”, afastado de sua realidade
fantástica, a criança descobre um mundo em que “quando as pessoas ficam doentes
são ligadas na parede”. Aliás, essa fala é uma das que simboliza as reflexões
que quisemos trazer aqui. Em primeiro a criança, livre de todo o peso da idade
adulta, cria sem peias, portanto, desloca-se de uma possível realidade imposta.
Na verdade, quando ela e o pai opõem-se a deixar o local mesmo sob o risco de
morrerem afogados pelas cheias, estão a inventar uma existência própria. O
sonho de escreverem sua história e não serem escritos por ela. O sonho de não
rendição, de oposição ao que supostamente seria o normal. Coisas de quem faz
revolução. Coisa de quem imagina. Coisas de quem peleia pela vida, mas que “sente com inteligência e pensa com emoção”
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