domingo, 3 de março de 2013

Variações de amor



Variações de amor

 

Sentir será o verbo a nos guiar enquanto mirarmos o musical “Os Miseráveis”, que a partir do clássico homônimo de Vitor Hugo, conta-nos uma história sobre o amor. O diretor Tom Hooper, auxiliado por um elenco que traduz bem a sentimentalidade das questões que enredam a trama, acaba por brindar o expectador com doses colossais de poesia, revolução e amor. Nada mais e nada menos louvável para compor no cinema a obra ilustre de Vitor Hugo.

Os ingredientes da narrativa seriam já o bastante para uma reflexão profunda acerca do momento histórico francês. Contudo, o que nos lança pra dentro da trama supera as questões ideológicas, históricas e até mesmo filosóficas. “Os Miseráveis”, para além de evidenciar a necessidade da resistência, do ideal e dos sonhos, faz reluzir na face das personagens uma luta ainda mais humana – a luta pelo amor.

O gesto seminal deste embate é o momento em que o bandido Jean Valjean (Hugh Jackman) recebe a graça/amor do representante do clero. Essa cena é crucial para toda a história. Assim, o padre, ao libertar o bandido das amarras do crime que cometera ao furtar a igreja, acaba por revolucionar internamente o suposto ladrão. Assim, a liberdade, bastião da Revolução Francesa, é catapulteada de dentro do bandido, que deixa pra trás uma veste de ódio, e agora, livre de sua mácula, percorre as veredas do amor.

O início da saga do bandido inicia-se quando encontra uma mãe que tem sua filha em perigo. O socorro à criança é o gesto que faz brotar uma relação paterna com a mesma e que é o fio condutor da trama. Assim, quando Jean Valjean resolve viver pela criança, realiza os dizeres de Lévinas, “enxergar-se no rosto do outro”. Nada mais adequado ao filme que retrata a condição “miserável” do povo francês. O amor que vem simbolizado neste gesto é o que sustenta a existência do bandido que luta contra sua identidade passada, tendo na sua filha, a razão sentimental para livrar-se de um passado indigno.

A perseguição que Jean Valjean recebe do inspetor Javert (Russell Crowel), contrasta a dicotomia justiça x amor. No entanto, quando Jean Valjean tem a chance de acabar com a vida de Javert, aquele não atua fundado em uma possível justiça ou revide por conta da perseguição, ao contrário, dá a outra face, perdoa, ama! Neste sentido, quando o bandido não mata o inspetor e o liberta, faz com que a mesma catapulta que o salvou no início do filme, também liberte o inspetor. No entanto, a liberdade de Javert vem de maneira existencial e, diríamos, inspirada em Albert Camus, ou seja, ele se mata. A identidade justiceira cede ao calor do amor que ressoava dentro daquele coração de pedra.

A saga do bandido que ama simboliza bem o momento vivido pelo povo francês que vivia pelo sonho da liberdade. O inspetor morre pela liberdade a que o bandido lhe impusera. A mãe de Amanda Seyfried (Cossete),  Anne Hathaway (Fantine),  morre por amor à filha e faz nascer uma existência real de Jean Valjean que se torna seu pai e tem na filha o sentido de sua vida. Os revolucionários morrem por acreditarem no sonho de liberdade, impelidos pelo amor.

Nesta estória, o amor concebe o novo: a revolução! Um inspetor que morre por um bandido. Um bandido que morre pela vida. A revolução derramou sangue, vinho, poesia e sonhos, mas fez nascer, também revolucionariamente, aquilo que deixa-nos cegos de tanta lucidez, de tanta luz, pois, “amar outra pessoa é ver a face de deus”, pois, “é só o amor que conhece o que é verdade...”

Texto publicado originalmente publicado na coluna "Cinema com Filosofia", na edição 1152/2013, 02/03/2013, do Jornal Correio da Cidade

Bernardo G.B. Nogueira
BH – verão – 2013.


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