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segunda-feira, 9 de julho de 2012

Andança


Andança

Cheiro de mato. De todo aquele dia que foi quase noite restou o cheiro do mato. Havia uma figueira centenária, uma estrada com buracos e poeira. Pedaços da história do que virá. Como havia também pedaços da madeira que um dia já foi árvore, foi casa e é nada agora. A poeira encobria o caminho que era construído, a paisagem se confundia comigo. Meus olhos eram a natureza e a natureza era eu mesmo. Todos os pássaros que voavam sorriam para mim e informavam o rumo a ser encontrado.

Por cada vez que toquei aquele chão senti que uma nova vida brotava. Assim como em todas as partes daquele local a vida sussurrava aos nossos olhos. Dizia de uma canção que guiava nossos corpos para cima daquelas montanhas recheadas de sonhos. Recheio bom igual ao cheiro que partia do fogão movido a lenha. Fogão que também tinha uma história que se escrevia a cada estampido das lenhas queimadas. A lenha movia o fogo que esquentava a prosa e que trazia o café pronto.

Um menino cruzou nosso caminho com olhar que também tinha cor de mato. Ele riu, atravessou a estrada e se perdeu no mato que tinha a cor dos seus olhos. Acompanhava ele uma serenata de cigarras e sons de uma água que escorria pelo caminho que não sei se começava ou se acabava ali. Cruzamos o rio e deixamos o menino. Levamos seu riso e seu olhar. O mato ficou pra trás.

Ao subir a serra ficamos mais perto do sol e o quentume dele era igualzinho ao quentume que sentimos quando a avó abraça a gente. Abraço que também íamos dando na montanha ao subi-la. É uma maneira interessante de pensar os caminhos em volta das montanhas sentindo que a estamos abraçando. A relação fica mais gostosa, a viagem resta esquecida e depois é só amor com a montanha. Engraçado, por certo, ficar apaixonado por uma montanha, mas pior deve ser não amar nada nem ninguém. Fiquei apaixonado com aquela serra mesmo. Confesso.

Falando em amor, há também outra implicação nisso tudo. Eu não amei só a serra. Confesso. Assim que topei com o menino, eu acabei por me distrair e um regato que corria do outro lado da cerca me deixou apaixonado. Alimentava tudo ao seu redor e levava em seu corpo um pedaço novo de si mesmo. Não há como não se apaixonar por aquilo que cria em nosso coração um sentimento de leveza. Interrompi a caminhada e me entreguei àquele espelho d’água. Ficamos ali durante alguns minutos. O rio lindamente indiferente. Eu perdidamente apaixonado. Voltar ao caminho depois daquela relação de amor ficou mais real. Não trai a serra com o rio. Mesmo porque não me entendia cindido dele, nem dela.

Depois que a serra ficou pra trás o cheiro do café ficou mais intenso, e a chaminé que levava a fumaça branca embora, dizia que era hora de chegar. Chegar porque aqui ninguém avisa a hora. Porque não tem telefone. Menos ainda smartphone. Apeamos ao fim da tarde. O café estava à mesa. Tinham umas rosquinhas que o leite da vaca que estava ao meio da estrada havia fornecido. O riso do menino estava agora explicado. Ele sempre se servia ali naquela mesa. O rio ainda brandia lá fora dando continuidade ao seu curso infinito. Meus olhos se perderam adentro das palavras baixas que ebuliam de dentro da história da serra, do rio e da janela por onde todos os sonhos entravam em meus olhos. Janela que recebeu os raios do sol, as gotas do orvalho, a fumaça do fogão, e que recebia agora todo o cheiro que me criou, cheiro de vida, cheiro de mato.
Bernardo G.B. Nogueira
Inverno – Conselheiro Pena

Canção para ler o texto:
http://www.youtube.com/watch?v=O6CQsOI2qMg

sábado, 16 de junho de 2012

Um café?


Um café?

Hoje bebo um café que acabo de fazer. Mas talvez fosse ainda melhor beber do café que eu mesmo houvera de plantar. Desde a escolha do grão até a espera para o dia certo da colheita. Fazer aragem da terra e cultivar cada momento daquele pé de café que me vai dar o que beber dentro em pouco. É como tomar as rédeas e não entregar pra ninguém. Se o café for amargo, falhei no plantio, se for leve, cumpri bem a labuta. Depois dessa forma de me acorrentar a mim, nunca mais poderia pedir socorro. Parece que é uma forma de suicídio lento ou de renascimento constante essa a de preparar o próprio café.

De alguma forma pensei que poderia estar com esses grãos e essa terra em minhas mãos. Depois tomar o café. Antes colher e sentir o cheiro. Mas vem sempre uma garoa ou outra. Sempre há um algo ou um porém. Porém, por causa disso, um café ruim fica bom e o café bom pode também ficar ruim. De certa forma essa deve ser a graça de estar com essas rédeas nas mãos. Ora, mesmo sob a máxima atenção e carinho não se pode prever o que vem. Aquela chuva que pode ser a salvação da lavoura e ao mesmo tempo pode ser a arma que aflige de morte a plantação. Todas essas formas variáveis de acontecimento roubam nossas rédeas. Toda a exatidão de cada cova desce feito nada com a lama da chuva que não perdoa nem o plantador mais cuidadoso. Assim como o sereno não respeita quando chega e quer queimar. Aí é o fim, o início ou a invenção.

Inclusive, é interessante como mais uma vez e sempre os paradoxos estão a nos rodear. Ao mesmo tempo em que o sereno molha, queima. Ao mesmo tempo em que a água da correnteza bravia molha, cria uma secura que impede a vida. Vida que nasceu da água que irriga a planta e que depois volta para matá-la, sem dó, imprecisa e precisa ao mesmo tempo. O paradoxo sempre cria. Porque nasce a vida do encontro entre seres distintos. Mesmo que um dia a filosofia antiga nos ensinara que já existiram como um só. Ainda assim, só nasce do desencontro, o encontro. Da secura, a lágrima. Do papel em branco, o poema. Do fim da estrada, a invenção. E acho que agora que terminei a xícara entendi o motivo pelo qual esse café, que é como tantos outros, igual e diferente, me trouxe até aqui. Quase sempre um café vem acompanhado de uma prosa. A prosa por sua vez é normalmente estabelecida entre duas ou mais pessoas. Mas não significa que não podemos prosear sozinhos ou beber café sozinho. Pode sim.

Quando pensei na possibilidade de manter o controle fui ingênuo como quem não acredita no amor. Essa sensação aparece por conta de uma solidão e um medo do passo que temos que dar em direção ao outro. Não há uma existência sem ele. E, ademais, o cheiro do café só tem sentido por causa de um olhar que vem à mente quando somos interpelados pelo seu aroma. Ou quando o paladar ativa uma memória guardada entre as vicissitudes de cada dia. Nesse sentido é que aquelas rédeas que queremos ter à mão na verdade não nos estão oferecidas. O plantio pode até ser cuidadosamente acompanhado por amor e carinho. Mas o evento café não está nem de longe passivo e entregue a estas tentativas de antecipações. Somos sempre surpreendidos pelo outro que vem. Pelo que é maior que nós, exatamente do tamanho daquilo que não podemos prever. Ao contrário da dose que pode ser medida, a embriaguez com que somos acometidos não cabe na xícara, tampouco pode ser prevista aquando do plantio.

Um café é um momento de possíveis nascimentos. Esse momento a mim foi revelado nesta tarde de outono. Fui lavrador, plantei, irriguei e colhi. Cheguei até a escolher os grãos e os moer e torrar. O café estava em mim desde o nascimento até a morte. Sempre em primeira pessoa realizei esse ritual de criação. De fundação de um novo momento, de um novo gosto. Cada gole foi uma história contada. Cada partícula daquele cheiro formava em mim uma sensação desconhecida e que não fora prevista quando comecei o plantio e quando terminei o café. Meus poros foram reinaugurados. Meus olhos se surpreenderam. Essa surpresa é da mesma ordem do encontro. E aí que o café se ajunta ao novo encontro. Somos tomados pela novidade do outro. Somos embevecidos de seu olhar, tomados por seu aroma, furtados de nós enquanto nos perdemos em sua imensidão. Que é infinita, imprecisa e imprevisível, e que é, portanto, linda e apaixonante. Pois o outro pode ser um sol radiante que faz a plantação viver, pode ser a chuva forte que leva embora todo o plantio, pode ser o sereno que queima a lavoura, pode ser uma a boca insossa que não se sensibiliza pelo sentimento do café. Estamos sempre à mercê desse outro que nos forma, nos realiza, ama e odeia. Não posso escolher o gosto que o café me trará, pois não posso escolher os olhos aos quais me irei apaixonar. Sei que dessa tarde ficou o gosto de um café infinito. Os raios do sol que entram pela janela e aquecem meu corpo e o sentimento de constante possibilidade pelo outro que virá, sem pedir licença, sem bater à porta e sem avisar. Pois quando é amor é assim mesmo, quando percebemos, estamos enamorados, igual ao café, quando percebemos, a xícara já se esvaziou.

Bernardo G.B. Nogueira
Outono – Conselheiro Lafaiete.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Do barulho do namoro


Do barulho do namoro

Uma primeira chuva
cor de sonho,
na primeira gota, voou
em canto de água turva.

Mistérios de olhos nus,
corpo estendido sob a luz,

em faces bailarinas,
traduz,

em seiva dançante,
conduz,

Chuva forte e desvairada,
vento dado na galhada,
estrada estranha desvendada.

Pairaste cedo sob minha morada,
com uma gota de cada vez,
primavera em eterno outono,
minha namorada, meu talvez.

Bernardo G.B. Nogueira
Itabirito - outono