domingo, 24 de fevereiro de 2013

O som da poesia



O som da poesia

“De nuestros miedos
nacen nuestros corajes
y en nuestras dudas
viven nuestras certezas.
Los sueños anuncian
otra realidad posible
y los delirios otra razón.
En los extravios
nos esperan hallazgos,
porque es preciso perderse
para volver a encontrarse.”


Há um belíssimo livro intitulado, “O dia em que a poesia derrotou um ditador”, no original, “Los días del arco-íris”. Livro de Antonio Skármeta que retrata o momento em que Pinochet convoca um plebiscito no Chile. No enredo do livro há a narrativa da construção da campanha contrária ao ditador. A leveza e a poesia que irradiam as letras do romance trazem um ar que simboliza o momento que o continente sul-americano passa e que parece, acabou por tocar nossos vizinhos norte-americanos.

A reflexão aqui varia entre a ideia de multiculturalismo, poesia, ruptura e, conseqüentemente, arte.  Na verdade, é sabido que a filosofia não alcança exatamente o momento de acontecimento das coisas. Já foi dito que “a ave de minerva levanta vôo ao entardecer”. Então, na vã busca de captar esse momento, lançarei minha lente ocular ao que acredito ser um indício de que as regras do jogo estão a se alterar, e parece que a formação de uma imposição vertical, altera-se agora para uma horizontalidade que assim é mais real, mais conhecimento e menos imposição.

O estado plurinacional que está a se consolidar no continente latino-americano desde as últimas revoluções na Bolívia e no Equador, é modelo de uma nova forma de existência. Novas possibilidades que pensadores como Boaventura de Sousa Santos na Europa, Enrique Dussel em língua espanhola e José Luiz Quadros de Magalhães no Brasil, vêm insistindo na percepção. Essa questão anuncia uma nova forma de concepção da existência mesma. Mostra a formação de uma nova subjetividade que rompe com as bases modernoeuronorteamericas que não apresentam, se é que apresentaram algum dia, alternativas plausíveis para povos tão distintos.

No entanto, dentro desta prosa, não poderia aprofundar nesse tema que muito me encanta e existencialmente realiza aquilo que Heidegger chama de autenticidade. Serviram-me, tanto o texto de Skármeta, quanto o ideário acerca da plurinacionalidade, para introduzir uma reflexão acerca da posse do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Na verdade, não me irei deter sobre as questões que possivelmente poderiam entreter-nos nesse tema. O que me interessa é dizer da escolha do poeta de origem cubana Richard Blanco, para fazer a leitura de um poema no dia de sua posse.

É notável que os presidentes eleitos, representantes do partido democrata, são os únicos a trazer poesias para o dia da posse. Isso de alguma maneira mostra uma face mais lúcida na postura de condução daquela nação. Obama não fugiu a este histórico, contudo, supera esse detalhe quando coloca Blanco na condição do poeta escolhido para o dia da posse. Obama é negro, foi eleito por 70% da comunidade de origem hispânica e goza de um carisma quase latino, incomum dentre os representantes daquela nação, salvo talvez Clinton e Kennedy.

Então, para dizer desse momento, foi necessário ir até Pinochet, quando a poesia de uma campanha plural derrubou seu governo cinza, e também passar pelo novo momento filosófico e político que enreda nosso continente. Pois não seria possível Obama sem que o contexto estivesse pronto para recebê-lo. O “mundo munda”, também nos ensinaria Martin Heidegger, no entanto, as bases através das quais esse “mundo munda” estão a se alterar, e se um dia os pensadores de uma Europa antiga, e de alguma forma decandente, foram os únicos standarts a nos orientar, na contemporaneidade, percebe-se que a construção de um paradigma mais condizente passa por um nascimento que esteja aliado à uma identidade que não pode meramente ser imposta como a real, por vezes mais real que o próprio real.

Assim, o nascimento dessa nova matriz de conhecimento proposta na América Latina, passa também por aquilo que se quis chamar pluralismo epistemológico. Teoria que nos evidencia um necessário reconhecimento do outro. Reconhecimento de que existem várias maneiras de composição do conhecimento. Maneiras plurais de existir. E longe do que autores como um Arnaldo Jabor, que falta apenas fantasiar-se de norte-americano, mostra que a história não é linear, ou seja, que não estamos querendo envelhecer para nos tornarmos civilizados como os europeus. Em verdade, esses argumentos falhos vêm sendo utilizados desde a colonização do solo ameríndeo e passa por intervenções, as mais obtusas, sob argumentos democráticos e de direitos humanos (sic). Esse pluralismo ajuda a corrigir incompreensões e intolerâncias, sejam religiosas, sociais, étnicas ou científicas. Assim, o outro não é o melhor, ele atua de maneira a compartir o mundo comigo, com suas distintas percepções, nem melhor, tampouco pior, distinta e contributiva, mesmo que não aceitemos. Essa mudança de paradigma rompe com um sistema mundo europeu, o qual Immanuel Wallerstein chamou de “universalismo europeu”, que concebia uma única e correta forma de saber em detrimento das demais. Perceber que isso fora uma falácia, é importante para uma existência menos infantilizada.

Obama ao convidar um poeta de origem cubana e declaradamente homossexual, dá prenúncios de que percebe o contexto existencial e filosófico contemporâneo. Em primeiro assume que a poesia, além de toda sua faceta estética, realiza o humano em sua maior condição e é imprescindível na construção da realidade. Ainda sobre isso, a origem do poeta, arredia aos olhos de conservadores do pensamento, burocratas intelectuais, diria, talvez tenha uma conotação de que o inevitável se mostra sem que possamos encobri-lo. A poesia é inevitável, e fica simbolizado nisso que a pluralidade já chega à Casa Branca, não sei com que intensidade, posso estar sendo deveras otimista, mas foi o que vi. De outro lado, a figura de Blanco, homossexual assumido, também mostra que o presidente de um país com histórico tão turbulento em face de pluralidades, evidencia mais uma vez que a poesia da existência deste poeta mostrou-se inevitável, não só ao presidente eleito, mas também em face do que ocorre na literatura humana mundial.

As intolerâncias, ainda presentes em muitas questões ao redor do mundo, podemos dizer dos extremismos religiosos no Oriente Médio e dos extremismos financeiros na zona do euro, não possuem cadeira dentro desse novo movimento que estamos a anunciar. Aqui, a poesia ensina à física, o poeta dialoga com o presidente, a razão se emociona. Não há distinções entre seres humanos por conta de suas preferências. A pluralidade acolhe o outro, e não apenas o outro na medida como queremos que ele venha. Os filósofos Jacques Derrida e Emmanuel Lévinas contribuíram imenso para justificar essa nova construção de subjetividades.

Assim, ludicamente, ao ouvir Blanco recitar seu poema para o povo norte-americano, relembrei a campanha contra Pinochet. Da mesma forma como me fez lembrar de um tempo que ainda não veio. Tempo em que a racionalidade moderna ficou pra trás. Tempo em que o poeta diz das regras. Momento em que na nação que um dia dizia-se a maior do mundo, precisou silenciar e ouvir versos com herança espanhola. Tempos em que Obama trazia em sua face um clamor pela diferença. Lembrei-me do tempo em que a poesia cantou pra razão, e como as sereis de Ulisses, entorpeceu seu pensamento, e daí em diante, não sabemos em que mares navegar. Sabemos apenas que a canção não será mais imposta, necessariamente virá misturada de cores, cheiros e sons, compondo assim um poema mundial. Aquele no qual o humano figura sem rosto, sem etnia, em silêncio, sem gênero, nu. Humano demasiadamente humano...

Bernardo G.B. Nogueira
Conselheiro Lafaiete – verão – 2013.

- Boaventura de Sousa Santos: sociólogo português, um dos maiores pensadores do mundo em face do tema multiculturalismo.
- Henrique Dussel, filósofo argentino, radicado no México, precursor do pensamento nominado filosofia da libertação. Filósofo engajado em temas afeitos à latinoamérica.
- José Luiz Quadros de Magalhães: Professor da UFMG, atua na área de Direitos Humanos e acaba de lançar uma obra intitulada: “Estado Plurinacional e Direito Internacional”;
- Martin Heidegger: pensador e filósofo alemão, que junto de Friederich Nietzsche, prestou enorme contribuição para o pensamento ocidental aos fins do século XX.
- Emmanuel Lévinas: filósofo de origem judaica, conhecido como o filósofo da alteridade. Escreveu sobre a ética como filosofia primeira, e é um dos maiores filósofos contemporâneos, o outro é o lócus privilegiado do ideário deste autor;
- Jacques Derrida: herdeiro do pensamento de Lévinas, é conhecido pelo método da desconstrução, sua filosofia tem a marca da superação do pensamento moderno.

Texto originalmente publicado na edição nº144, 02/2013, Ano 11 - Literatura -Filosofia - Música e Cultura do Jornal Cultural "Conhece-te a ti mesmo"

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