Entre o delírio e a vertigem do real
Existem
diversas formas de circundar a existência humana. A arte apresenta-se talvez
como uma das mais bem conseguidas. Na temulência de Guimarães Rosa e na embriaguez
apolínea de Nietzsche inscrevemo-nos. A construção sempre inacabada do humano
passa por uma sua transcendência que tem no movimento artístico, morada
privilegiada. Em nosso caso, a arte é a que vem do palco, o teatro, com direção
de Rita Clemente, textos de Jô Bilac e encenados a partir do já conhecido Oficinão
Galpão Cine Horto.
Os
espetáculos “Delirio e Vertigem”
conduzem exatamente para o que no humano é inevitável: suas facetas de tragédia
e comédia. E nesse caso, os textos, ornados por uma direção sutil e precisa,
deixaram com que os atores levassem o público pra dentro da peça, ou o que é
mais interessante, pra dentro de si mesmos. Desse modo, é necessário dizer dos
textos, que exatamente por não guardarem uma linearidade, deram um tom real
sobre a existência humana. A inexatidão dos encontros, que em sua maioria são
ajustados segundo regras de condutas morais, religiosas e costumeiras, resta
clara nos diálogos, e ganha cor de vida na pele dos artistas. Assim, pode-se
ver em um mesmo rosto a comicidade da tragédia e a sutileza da comédia. Andaram
juntos, direção, texto e atores, sintonia fina necessária para uma narrativa
desta monta.
A
peça gravita entre situações peculiares do cotidiano e seus desdobramentos. São
encontros que lêem de maneira peculiar o cotidiano. Se coube ao Chico Buarque
cantar “todo dia ela faz tudo sempre igual”, do lócus privilegiado que a peça nos permite falar, essa cotidianidade,
por mais que simbolize quase que uma sedimentação de costumes e modos de
existir, assim como a mulher na canção de Chico, os estereótipos e os locais
predeterminados são abordados sob uma perspectiva em que nem sempre isso dá
certo - isso se algum dia já deu. O espetáculo desnuda o humano. Essa seria uma
boa frase pra dizer dessa interlocução: delírio-vertigem. Toda a
pré-disposição, toda a fórmula e toda a orquestração entram em cena pra serem
desnudadas. Os duplos são bem explorados, e na exposição dos papeis planejados
da sociedade penso estar um ponto alto do espetáculo: pois que desde um estereótipo
de família burguesa, até um namorado convencional, o que o espetáculo nos
remete é para as entranhas das relações. Os aficcionamentos, paranóias, tão
afins na contemporaneidade, são colocados às claras, na cara da platéia que
desde então já está envolvida por estas entranhas. Tão estranhas, tão reais.
Parece
que a cada situação cotidiana e supostamente simplória, o espetáculo nos conduz
a uma espécie de análise. A epiderme das relações é evidenciada e vemos o
humano de dentro pra fora. Isso é um mote espetacular da peça, pois, uma vez
que mudamos a direção do olhar, além de percebermos outras perspectivas, vemos
nascer um humano nu, que ainda preso às convenções se manifesta como comédia ou
tragédia. Assim, a todo momento as
relações são mostradas em seu limite, tanto de absurdo quanto de realidade. O
que a obra mostra é que, de fato, gravitamos ai nesse cosmo. Entre o absurdo
que é criado pelas convenções e que elimina – quer eliminar – algumas pulsões,
e o outro absurdo que pulsa dentro de cada um. E nesse encontro, quando alguém
cede, acaba por se tornar o convencional, talvez o que a maioria chama de real,
de outro lado, quando não há concessões, chama-se absurdo, ou loucura. Delírio?
Uma
outra palavra que seria bem vinda nesta peça seria desejo. Vimos em nossa volta
a todo momento projeções de desejo. Aliás, na sociedade de consumo e de máscaras,
tão necessárias quanto fugazes, essa relação torna-se doentia. Pois a mesma
razão para o consumo de um objeto desejado, podemos auscultar nas relações
humanas. O consumo do outro é transformada na possibilidade de realização dos
desejos. Desejos que são superficiais em duas vertentes: em primeiro, quando
vemos as pessoas falecerem em vida na vã tentativa de adequação a modelos variados,
e de outro, os desejos, em verdade, são invenções que transformam os sonhos em
mercadoria, e o humano, nessa relação mercadológica, em um enorme joguete, sem
inspiração, preso ao próximo modelo. Por aqui temos alguns desdobramentos do
texto, pois a questão do desejo povoa o imaginário da peça quando percebemos
que dentro de cada relação há um sem fim de possibilidades a partir das
expectativas dos convivas. Isso tudo, somando às convenções que são claramente
desnudadas, transformam por vezes os personagens em seres paradoxais, humanos,
portanto. Paradoxo que faz com que alguns personagens vivam em sua morte e
morram a cada dia de viventes. Mesmo que o verde manifeste alguma esperança,
que é delírio, que é vertigem ou uma real confiança na vida? Uma saída comum a
quem se perde?
“Só
a bailarina que não tem”. Quando o mesmo Chico Buarque de Cotidiano canta sobre a bailarina, percebemos o quanto o real não
existe de fato. Sobretudo se observado sob o prisma de padrões pré-concebidos, ou
seja, se como nos ensina Slavoj Zizek,o real inexiste, na medida que é aquilo
que nele projetamos, então, esse ideário que marca locais e institui modelos, é
apenas uma construção daquilo que se quis chamar realidade. Assim, delírio e
vertigem se misturam na incompletude que é o humano. Ora a mostrar uma face
mais real, de vida, ora, a se manifestar apenas por intermédio de uma
construção de cenas a ele imposta, portanto, as duas formas tão reais e tão
irreais ao mesmo tempo.
Depois
de sabermos que o real não há. A questão que se coloca é: como distinguir essa
impossibilidade daquilo que seria seu contrário, ou seja, o irreal, o delírio?.
De alguma maneira penso que a resposta estaria localizada na vertigem. Pois se
Nietzsche nos ensinara que o homem é sempre um animal incompleto e inacabado,
em pleno estado de potência, temos a ideia de que na vertigem da criação
estaria localizado o momento em que a questão do real se localiza. Pois se com Heidegger
podemos pensar que o dizer poético é o dizer que diz do Ser, não poderíamos
deixar de perceber que entre o delírio e o real existe a arte, que na angústia,
na vertigem de sua criação, constrói o homem, com desejos, com limites, absurdo
na maioria das vezes, porém, nada menos que infinito, como a arte, como o
teatro, e como um delírio!
Bernardo
G.B. Nogueira
BH
– verão - 2013
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