quinta-feira, 15 de novembro de 2012

“Quem inventou o amor?”



 

“Quem inventou o amor?”

Falar sobre o filme “O Ditador” de Luis Llosa, e sobre as questões que o enredam é tarefa árdua, não apenas pela proximidade temporal com que ainda os problemas dos regimes ditatoriais nos assombram, mas também pela deformação de possibilidades para o outro com que os regimes nutrem seu discurso. A ditadura imposta por Trujillo fora uma das mais crueis da América Latina, e nossos sentimentos se direcionam a tratar de alguns pontos do filme que narram parte desta história. Contudo, não irei falar apenas das mazelas de uma ideologia que se impõe, tampouco, irei prender-me a críticas ante as ações indignas de Trujillo e seus comandados. 

Gostaria de dizer alguma coisa sobre um eixo, que me parece, se estabelece bem na trama. Refiro-me à idéia de possibilidades, de sonhos e construção, enfim, de humanidade e sua atuação no palco da existência. Para essa idéia terei como norte a relação de Urania Cabral (Isabela Rossellini), com seu pai, o “cabeça de ovo”, Agustín Cabral (Paul Freeman), um dos braços direitos de Trujillo – esquerdo que não seria. Os elementos ideologia, amor e existência autêntica, rodearão minha perspectiva.

Abraão entregou seu filho para o sacrifício. Esta passagem bíblica tem nuances que acabaram por me tomar quando estive em contato com o filme. A fala bíblica é a que segue: “Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi” (Gênesis 22:2). A obediência de Abraão ao comando divino pode ser interpretada por uma aceitação do destino, pode também ser vista como uma questão de piedade, de fé, de respeito ao Deus que é onipotente e tudo sabe. Isso a evidenciar a confiança inamovível daqueles que crêem. Esse ideário, por suposto, sustenta-se em uma doutrina platônico-cristã de que há outro mundo e que, ademais, esse mundo em que nos encontramos é local no qual estamos perdidos e entregues às perversões da carne. A elevação do espírito é o que move uma busca pela realização final junto ao Pai. Esse também pode figurar como um dos motivos pelos quais Abraão atende ao comando do pai. Essa vida aqui só se justificaria se acaso houvesse o outro mundo em que a paz nos aguardaria. Faz-se aqui com vistas pra lá. O mundo ou a cidade de deus em contraposição à cidade dos homens (Santo Agostinho). 

Há uma forma de pensar que cria uma espécie de bloqueio da realidade, ou, em melhores palavras, em regimes ditatórios ocorre a criação de uma única e possível realidade. Imposições erguidas sob argumentos de autoridade, sejam ideológicos, sejam espirituais, sejam políticos. A fé, que acaba por mover a crença em um deus que tudo pode, converte-se na crença em face do estadista, inefável. É claro que não estou a dizer que necessariamente a crença de Abraão é proporcional àqueles que obedeciam ao regime de Trujillo. Contudo, também não estou a dizer o contrário. Há questões que envolvem e permitem, em alguma medida, esse entrelaçar de idéias. Miremos: o descumprimento das leis divinas leva o homem a padecer no inferno. O descumprimento das regras do regime ditatorial condena à morte. Descumprir os ditames divinos nos faz pecadores e não mais merecedores de habitar o Hades eterno. Ao divergir de Trujillo, os indivíduos eram considerados subversivos. A condenação parte de um lugar comum dentro do manejo de idéias que estamos a trilhar: a falta de fé. Ela levou o homem a “grandes desgraças”, a bíblia traz muitos relatos disso, a falta de crença - e por isso mesmo, não caberia divergência - nos ideais de Trujillo, levaram ao chão as cabeças que se queriam alçar ao céu com novos ares.

Assim, no sentido que aqui estamos a aludir, o primeiro elemento que dissemos tratar fica anunciado, em forma de palavra sacralizada, sob forma da imposição de uma maneira de percepção do mundo, seja por uma imposição espiritual, seja por uma imposição armada, financeira ou religiosa, parece que o conceito negativo de ideologia fica exposto nestes caracteres.

Quando Abraão entrega seu filho, também poderia argumentar que percebia a misericórdia divina tamanha, que seria improvável que por detrás daquele sacrifício não houvesse algo maior. A crença também faz com que tenhamos visões de coisas que em verdade não existem. Nesse caso, penso que o amor é também um ato de fé. A falta de confiança do ditador e o desligamento de Agustín do regime, fizeram com que a questão da pressão ideológica e da estreiteza de um regime ditatorial viessem à tona na vida do “cabeça de ovo”. Suas possibilidades diminuíam e a existência sufocava seu horizonte. Nesse caso, não estou a criar uma vítima do regime, o braço direito de Trujillo era agora apenas um membro que não funcionava mais. O derrame sofrido por ele já estava desenhado na cabeça do ditador. Augustín existia, mas não existia. Essa é mais uma face que a relação que propusemos permite realizar. Há o povo de deus, e existem os demais. Esta é inclusive um tipo de fala que acompanha Trujillo. O “cabeça de ovo”, portanto, não mais fazia parte desse povo eleito. A prova para fazer parte desse ideário é extrema. A fé é extrema. Abraão deveria entregar seu filho Isaque. Augustín, cúmplice de acordos nefastos, acaba sendo picado pela serpente que ajudou a cuidar. O veneno, no entanto, escorreria pelas veias de sua filha, virgem e cândida, pronta para ser abatida, qual um carneiro. Deus isenta Abraão da morte de seu filho em prova da sua misericórdia. Trujillo isenta a menina de sonhos. Não seria demais dizer que os ditadores instauram o caos e a insegurança para depois se afirmarem com o ardil da garantia da paz. Bom, esse seria só mais um traço dos absolutismos, políticos ou espirituais.

Depois de feito esse relato, em face da prisão em que se vive em regimes como o de Trujillo, e mais uma vez afirmo, não se trata apenas de uma prisão física, o pior está sempre por vir. Pois a liberdade fica tão restrita, que o indivíduo não pode agir senão dentro das estruturas criadas pelo ditador, essa face arranca de humanidade qualquer existência. As marcas dessa ausência de liberdade, e, portanto, de autenticidade no existir ficaram guardadas em Augustín e por conseqüência em sua filha. Um, debilitado por uma mazela física que denota e espelha a mazela de seu espírito regido pelo regime ditatorial. A outra, debilitada e marcada pelas escolhas não feitas pelo pai. Em verdade, não nos parece que o pai escolheu quando entregou sua filha ao abate. A prisão ideológica em que estava inserido nem o permitia ver o tamanho do problema que haveria de criar. Ora, agiu com a individualidade e limitação dentro da qual sempre esteve inscrito. A existência dentro do regime ditatorial requer essa inautenticidade. Retira possibilidades, determina o campo de escolhas, encerra a humanidade. Agustín não decidiu, em verdade, decidiu aquilo que Trujillo permitia a ele. Por óbvio, não concordamos com a inautenticidade e quase covardia do “cabeça de ovo”, apenas analisamos as condições ideológicas dentro das quais toma sua decisão, por certo, bem parecidas com o personagem bíblico.

Escolhas. Destino. Possibilidades. Criação. Verbos e ações referentes à vida humana. Verbos que não compuseram a trilha da peça de Uranita. Assim como no filme 360 de Fernando Meirelles, Urania se viu entregue à roda de um destino trágico do qual não fez parte na escrita. De alguma maneira estava tragicamente fadada àquilo, não de maneira a provar que o pai era mal. A prova de vida dada por Urania foi a de uma aniquilação da existência por um regime imposto. Quando o pai não se vê mais humano e toma uma atitude amedrontada e covarde, está a refletir aquilo que o regime o permitia. Por isso sempre é tão caro a estes regimes a organização, o uniforme, a precisão, qualquer nota fora desse tom não há previsão da conseqüência. Uranita deixou de ser Uranita e se tornou uma advogada de sucesso nos EUA. A ideologia seria enfim a tragédia que carrearia toda a sua existência. 

Não escolheu, supostamente o pai havia feito. Não viveu seu destino, pois a ditadura é quem escreveu. Não enfrentou possibilidades, neste regime, aliás como referimos, as possibilidades são ditadas e aquilo que Nietzsche chama de humano, não existe aí, não há transcendência, pois não há criação. Ora, se criamos, subvertemos, portanto, vivemos, no entanto, subverter é perder a vaga no céu determinado. Agustín não criou. Sua filha, obra sua, perdeu-se nos ditames de um regime inumano. Ele restou preso à doença do corpo, que ademais afligira sua mente desde sempre. Ela quedou presa à doença maior: nunca criou, nunca amou portanto. Pode-se dizer que Uranita nem sequer existiu.  Só temos provas disso porque o regime de Trujillo não fora uma ficção.

De alguma forma, parece-nos, isso para aliar a nosso tema alvo, que as revoluções têm sempre um combustível que é a inspiração. Criar, seria essa a única saída para a reclusão imposta pelo regime. O “cabeça de ovo” não criou. Simplesmente agiu dentro das possibilidades. Viver autenticamente é insurgir revolucionariamente diante das possibilidades. E a criação é sempre uma revolução, do novo contra aquilo que está determinado. Mesmo que impossível. Mesmo diante de um deus! Mesmo que amor... 

Bernardo G.B. Nogueira
Primavera - Conselheiro Lafaiete  



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