quinta-feira, 15 de novembro de 2012

“A máscara e o rosto”





“A máscara e o rosto”

“Machuca”, de Andres Wood, é outra película que reclama uma questão peculiar à existência humana. Ora, a relação com o outro, a forma como ele nos recebe, sua hospitalidade ou a falta dela, o compartimentamento das condições sociais, políticas, financeiras, ideológicas e jurídicas, é um dos lastros que a obra nos permite reconhecer. Um ambiente interessante para a criação de um filme a partir das relações infanto-juvenis de pessoas de “classes” distintas. Aliás, é até irônico falar em classes em relação a este filme, isto por conta do Chile estar a atravessar a transição Allende/Pinochet, tornando complicada essa marcação precisa, moderna e ditatorial.

Caminharemos pelo mote do momento de crise, tanto do país, quanto dos personagens Gonzalo Infante (Matías Quer) e Pedro Machuca (Ariel Mateluna). Dois jovens que vivem a crise da passagem da infância para a fase adulta enquanto o país vive uma crise de identidade ideológica que acaba com a tomada do pode por parte de Pinochet.

Resta claro que a idéia central esta na estrada entre regimes que se intercambiam e o modus como isso interfere na formação da polis e das pessoas que nela vivem. A crise é um termo que assola toda a existência do humano, ora, só a ele é dada a percepção de uma sua transcendência e mutação em um mesmo humano, mesmo que diferente enquanto construção. É a torrente do tempo que nos modifica e faz da existência o que ela é, nada mais que construção nossa, nada mais, nada tão real e nada tão inexistente ao mesmo tempo. A relação entre os garotos figura como um espelho a traduzir a tensão chilena no momento.

Vamos dizer de algumas questões interessantes que nos sensibilizaram em mais uma trama que retrata o histórico riquíssimo da América Latina. Dentro desta relação, temos elementos ideológicos que constituem nossa existência como humanos - para o bem ou para o mal, ou para além do bem e do mal. Certo é que há um garoto rico e um garoto pobre. Uma família burguesa e, portanto, mentirosa, e uma família desestruturada pelos problemas mais corriqueiros, tais como, bebida, falta de dinheiro, talvez com uma aparência menos irreal que a primeira. Desse contexto saem dois adolescentes à procura do mundo, como sói característico dessa fase.

O encontro entre a realidade de Machuca e de Infante se dá em uma escola extremamente elitista, mas que a partir de medidas inovadoras de pluralidade, impostas pelo governo Allende, recebe jovens que não teriam condições de pagar para freqüentar aquela escola. É interessante que esse encontro se dê dentro da escola. Local por excelência, de destruição de muitos artistas e da criação de funcionários padrão. Na película, o padre McEnroe (Ernesto Malbran), diretor do colégio, se esforça para criar uma relação igualitária entre os jovens, o que de alguma forma reflete o que ocorre fora dos muros da escola, onde o país fervilha em uma iminente guerra civil.

No meio da tensão, na krisis em que o socialismo de Allende está em perigo de vida, assomado por um tumor ditatorial nominado Pinochet, não sabe se convalesce e retoma a vida ativa ou se esmaece, sucumbindo. Figuram jovens, que alusivamente, como de fato ocorre em momentos assim, acabam agindo com um misto de razão e emoção, por vezes destacados da realidade em um mundo próprio, mas na maioria delas, sofrendo e imersos em choques de preconceitos, divergências de classes, problemas com as “castas” inventadas para distinguir humanos uns dos outros.

 Dentre as descobertas dos dois personagens, aparecem semelhanças que por vezes colocam a amizade acima de todas as estruturas. No entanto, há momentos em que a ideologia que impregna cada um dos lados não disfarça mais, e a animalidade cede lugar ao racionalismo incoerente das classes sociais. Os garotos, adolescentes que são, oscilam entre uma formação de personalidade e uma fragilidade infantil, perdem-se no caldeirão de imposições a que cada um deles é lançado. Todas estas questões  simbolizadas nas roupas, na relação com a família, com a cidade e com as autoridades que iniciam um processo de tomada de poder.

As relações estabelecidas entre os seres humanos por vezes superam essa precisão que ocorria em um Chile em crise. Machuca e Infante beijavam ao mesmo tempo uma mesma garota Silvana (Manuela Martelli), que transpunha o menino burguês para o mundo de ideologia de esquerda e pobre financeiramente. Do mesmo modo, Silvana fazia a transição de Machuca para um mundo burguês, dividindo com ele a lata de leite condensado que Infante havia comprado. Silvana funcionava como um portal que levava os garotos para o mundo dos homens, e ao mesmo tempo, levava um a se ambientar, mesmo que momentaneamente, ao mundo do outro. Essa relação não parecia possível na disputa pelo poder no Chile. Ao que parece, o único momento em que os ideais se encontravam era na vontade de estar a frente do país.

Assim, de descobertas em descobertas, Machuca se tornara amigo de Infante e este daquele. No entanto, no desenrolar da trama, fica clara uma questão: cada vez mais a beira do rio em que se encontravam ficara distante. Cada vez mais os lábios de Silvana não se davam aos adolescentes ávidos. Cada vez menos havia possibilidade de encontros sem intenções. A ingenuidade dava lugar a uma clara distinção entre os jovens, isso fica claro em algumas cenas como quando Infante é interpelado pelo policial na favela em que morava Machuaca. Nesse momento, o golpe de Pinochet se realizara e é exatamente essa a questão que gostaria aliar com a idéia de ingenuidade que me estava a referir.

A idéia é bem simples, ora, quando os meninos se encontram na escola. Antes de qualquer interferência, há uma ingenuidade que permite um existir que não fica pré-estabelecido diante das condições sociais que os separam – não deveriam separar. Ocorre uma hospitalidade entre olhares, que sobrepõem as diferenças impostas. A ingenuidade a que me referi é exatamente aquilo que antecipa o humano ao cidadão ou ao indivíduo civil. A relação entre Machuca e Infante nasce sob um prisma da ontologia do humano. Com a proximidade do regime de Pinochet, a necessidade de ordenação social e, nesse caso, de exclusão do diferente, impede qualquer relação entre rostos e qualquer encontro se dá mediado por uma ideologia imposta. Os encontros deixam de ser encontros e tornam-se convenções. Os humanos deixam de ser humanos e passam a ser portar como cidadãos. A imprevisibilidade do instante cede lugar à necessidade da ordem.

Aquilo que foi um dia uma tentativa de pluralidade, sem a máscara da ordenação, cedeu lugar à necessidade de estabelecimento das colocações civis. A organização da polis matou a criança. Ademais, meninos não conseguem se organizar, precisaram de armas adultas para matar de vez a infantilidade que une sem pretensão, pelo rosto e não pela classe. O fim da adolescência, que prometia um mundo de possibilidades dentro da diversidade e do novo, é marcado por aquilo que desde há muito vemos acontecer. Adultos em tom pastel se relacionando de maneira a cumprir regras de etiqueta. A fase adulta, se mantermos nossa relação, é exatamente o momento em que impera o regime de Pinochet. Com ele, Silvana é assassinada. Isso fecha o portal que permitia aos jovens transitarem pelos mundos distintos sem se dar conta da diferença. Não haverá mais “labios compartidos”, apenas “labios divididos, mi amor.”

O padre buscou fundar um relacionamento humano antes que político. Eles, por vezes cediam aos instintos humanos e se relacionavam. Em outros momentos, cediam às construções político-sociais. Erguer uma relação ingênua, talvez fosse uma possibilidade de alcance de paz. Enquanto os adultos cortavam os cabelos das crianças na escola, os demais adultos davam conta de certificar que não haveria nenhuma dissidência, nenhuma subversão ante o regime imposto. Era o momento de fechar as janelas, cuidar para que a luz não ofuscasse o caminho, traçar um plano de organização e tornar as coisas pro lugar. Mas quem inventou o lugar? Nesse momento, lembro-me de um poema que escrevi há poucos dias e que diz bem desse ideário:

Pra tudo um lugar.
Luva, mão.
Sexo, camisinha.
Beijo, bala.
Corpo, vestido.
Doença, remédio.
Viagem, mala.
Mãe, filho.
Café, leite.
Passarinho, gaiola.
Bebida, copo.
Bandido, cela.
Cavalo, baia.
Pensamento:
Quem inventa os lugares?

Ser criança e voar. Ser adolescente e lutar. Ser adulto e nunca se desprender do chão. Onde estamos? Parece que no filme o olhar complicado do adolescente é propositalmente colocado entre duas fases da história chilena. Não é difícil compreender que um regime adulto como o de Pinochet fora ultrajante. No entanto, o que salta aos olhos é a necessidade de perceber que a criação é condição da diversidade, e ainda, uma não existe sem a outra. O fim dos preconceitos entre adultos é a formação de jovens plurais. Na verdade, nem adultos, nem crianças, nem homens, nem mulheres, a ontologia do humano não cabe nas estruturas conceituais inventadas ao redor da história.

De alguma maneira, “Machuca” acende a idéia de uma existência adolescente, sempre em crise, pois, nos é de alguma forma ínsito esse estado de crise, de angustia, diria Sartre. Isso nos torna humanos. Que ela perdure na inércia de um estado de potência que pode ou não se tornar ato, mas que não pode ser forçado a se atualizar e ferir de morte os outros potenciais que traz consigo. Isso desemboca em outro poema, e com ele encerro:

Não te atrevas ao silêncio,
preciso do seu timbre,
anseio o toque do seu paladar.
Todos sem pudor.

Não te deixe acuar.
Crave os dentes.
Enrijeça a luta.
Em nada recue.

Tenha em sua fronte um sorriso infinito,
faça pulsar toda magia,
entregue o corpo, salte sem ver atrito.

Depois que as faces estiverem nuas,
o excesso irromper do escuro,
um brinde será regado de amor,
                                                  até entornar.

Bernardo G.B. Nogueira
Conselheiro Lafaiete – primavera.

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