“A máscara e o
rosto”
“Machuca”,
de Andres Wood, é outra película que reclama uma questão peculiar à existência
humana. Ora, a relação com o outro, a forma como ele nos recebe, sua
hospitalidade ou a falta dela, o compartimentamento das condições sociais,
políticas, financeiras, ideológicas e jurídicas, é um dos lastros que a obra
nos permite reconhecer. Um ambiente interessante para a criação de um filme a
partir das relações infanto-juvenis de pessoas de “classes” distintas. Aliás, é
até irônico falar em classes em relação a este filme, isto por conta do Chile
estar a atravessar a transição Allende/Pinochet, tornando complicada essa
marcação precisa, moderna e ditatorial.
Caminharemos
pelo mote do momento de crise, tanto do país, quanto dos personagens Gonzalo
Infante (Matías Quer) e Pedro Machuca (Ariel Mateluna). Dois jovens que vivem a
crise da passagem da infância para a fase adulta enquanto o país vive uma crise
de identidade ideológica que acaba com a tomada do pode por parte de Pinochet.
Resta
claro que a idéia central esta na estrada entre regimes que se intercambiam e o
modus como isso interfere na formação
da polis e das pessoas que nela
vivem. A crise é um termo que assola toda a existência do humano, ora, só a ele
é dada a percepção de uma sua transcendência e mutação em um mesmo humano,
mesmo que diferente enquanto construção. É a torrente do tempo que nos modifica
e faz da existência o que ela é, nada mais que construção nossa, nada mais,
nada tão real e nada tão inexistente ao mesmo tempo. A relação entre os garotos
figura como um espelho a traduzir a tensão chilena no momento.
Vamos
dizer de algumas questões interessantes que nos sensibilizaram em mais uma
trama que retrata o histórico riquíssimo da América Latina. Dentro desta
relação, temos elementos ideológicos que constituem nossa existência como
humanos - para o bem ou para o mal, ou para além do bem e do mal. Certo é que
há um garoto rico e um garoto pobre. Uma família burguesa e, portanto, mentirosa,
e uma família desestruturada pelos problemas mais corriqueiros, tais como,
bebida, falta de dinheiro, talvez com uma aparência menos irreal que a
primeira. Desse contexto saem dois adolescentes à procura do mundo, como sói
característico dessa fase.
O
encontro entre a realidade de Machuca e de Infante se dá em uma escola
extremamente elitista, mas que a partir de medidas inovadoras de pluralidade,
impostas pelo governo Allende, recebe jovens que não teriam condições de pagar
para freqüentar aquela escola. É interessante que esse encontro se dê dentro da
escola. Local por excelência, de destruição de muitos artistas e da criação de
funcionários padrão. Na película, o padre McEnroe (Ernesto Malbran), diretor do
colégio, se esforça para criar uma relação igualitária entre os jovens, o que
de alguma forma reflete o que ocorre fora dos muros da escola, onde o país
fervilha em uma iminente guerra civil.
No
meio da tensão, na krisis em que o
socialismo de Allende está em perigo de vida, assomado por um tumor ditatorial nominado
Pinochet, não sabe se convalesce e retoma a vida ativa ou se esmaece,
sucumbindo. Figuram jovens, que alusivamente, como de fato ocorre em momentos
assim, acabam agindo com um misto de razão e emoção, por vezes destacados da
realidade em um mundo próprio, mas na maioria delas, sofrendo e imersos em
choques de preconceitos, divergências de classes, problemas com as “castas”
inventadas para distinguir humanos uns dos outros.
Dentre
as descobertas dos dois personagens, aparecem semelhanças que por vezes colocam
a amizade acima de todas as estruturas. No entanto, há momentos em que a
ideologia que impregna cada um dos lados não disfarça mais, e a animalidade
cede lugar ao racionalismo incoerente das classes sociais. Os garotos, adolescentes
que são, oscilam entre uma formação de personalidade e uma fragilidade
infantil, perdem-se no caldeirão de imposições a que cada um deles é lançado. Todas
estas questões simbolizadas nas roupas,
na relação com a família, com a cidade e com as autoridades que iniciam um
processo de tomada de poder.
As
relações estabelecidas entre os seres humanos por vezes superam essa precisão
que ocorria em um Chile em crise. Machuca e Infante beijavam ao mesmo tempo uma
mesma garota Silvana (Manuela Martelli), que transpunha o menino burguês para o
mundo de ideologia de esquerda e pobre financeiramente. Do mesmo modo, Silvana
fazia a transição de Machuca para um mundo burguês, dividindo com ele a lata de
leite condensado que Infante havia comprado. Silvana funcionava como um portal
que levava os garotos para o mundo dos homens, e ao mesmo tempo, levava um a se
ambientar, mesmo que momentaneamente, ao mundo do outro. Essa relação não
parecia possível na disputa pelo poder no Chile. Ao que parece, o único momento
em que os ideais se encontravam era na vontade de estar a frente do país.
Assim,
de descobertas em descobertas, Machuca se tornara amigo de Infante e este
daquele. No entanto, no desenrolar da trama, fica clara uma questão: cada vez
mais a beira do rio em que se encontravam ficara distante. Cada vez mais os
lábios de Silvana não se davam aos adolescentes ávidos. Cada vez menos havia
possibilidade de encontros sem intenções. A ingenuidade dava lugar a uma clara
distinção entre os jovens, isso fica claro em algumas cenas como quando Infante
é interpelado pelo policial na favela em que morava Machuaca. Nesse momento, o
golpe de Pinochet se realizara e é exatamente essa a questão que gostaria aliar
com a idéia de ingenuidade que me estava a referir.
A
idéia é bem simples, ora, quando os meninos se encontram na escola. Antes de
qualquer interferência, há uma ingenuidade que permite um existir que não fica
pré-estabelecido diante das condições sociais que os separam – não deveriam
separar. Ocorre uma hospitalidade entre olhares, que sobrepõem as diferenças
impostas. A ingenuidade a que me referi é exatamente aquilo que antecipa o
humano ao cidadão ou ao indivíduo civil. A relação entre Machuca e Infante
nasce sob um prisma da ontologia do humano. Com a proximidade do regime de
Pinochet, a necessidade de ordenação social e, nesse caso, de exclusão do
diferente, impede qualquer relação entre rostos e qualquer encontro se dá
mediado por uma ideologia imposta. Os encontros deixam de ser encontros e
tornam-se convenções. Os humanos deixam de ser humanos e passam a ser portar
como cidadãos. A imprevisibilidade do instante cede lugar à necessidade da
ordem.
Aquilo
que foi um dia uma tentativa de pluralidade, sem a máscara da ordenação, cedeu
lugar à necessidade de estabelecimento das colocações civis. A organização da polis matou a criança. Ademais, meninos
não conseguem se organizar, precisaram de armas adultas para matar de vez a
infantilidade que une sem pretensão, pelo rosto e não pela classe. O fim da adolescência,
que prometia um mundo de possibilidades dentro da diversidade e do novo, é
marcado por aquilo que desde há muito vemos acontecer. Adultos em tom pastel se
relacionando de maneira a cumprir regras de etiqueta. A fase adulta, se
mantermos nossa relação, é exatamente o momento em que impera o regime de
Pinochet. Com ele, Silvana é assassinada. Isso fecha o portal que permitia aos
jovens transitarem pelos mundos distintos sem se dar conta da diferença. Não
haverá mais “labios compartidos”, apenas “labios divididos, mi amor.”
O
padre buscou fundar um relacionamento humano antes que político. Eles, por
vezes cediam aos instintos humanos e se relacionavam. Em outros momentos,
cediam às construções político-sociais. Erguer uma relação ingênua, talvez
fosse uma possibilidade de alcance de paz. Enquanto os adultos cortavam os
cabelos das crianças na escola, os demais adultos davam conta de certificar que
não haveria nenhuma dissidência, nenhuma subversão ante o regime imposto. Era o
momento de fechar as janelas, cuidar para que a luz não ofuscasse o caminho,
traçar um plano de organização e tornar as coisas pro lugar. Mas quem inventou
o lugar? Nesse momento, lembro-me de um poema que escrevi há poucos dias e que
diz bem desse ideário:
Pra
tudo um lugar.
Luva,
mão.
Sexo,
camisinha.
Beijo,
bala.
Corpo,
vestido.
Doença,
remédio.
Viagem,
mala.
Mãe,
filho.
Café,
leite.
Passarinho,
gaiola.
Bebida,
copo.
Bandido,
cela.
Cavalo,
baia.
Pensamento:
Quem
inventa os lugares?
Ser
criança e voar. Ser adolescente e lutar. Ser adulto e nunca se desprender do
chão. Onde estamos? Parece que no filme o olhar complicado do adolescente é
propositalmente colocado entre duas fases da história chilena. Não é difícil
compreender que um regime adulto como o de Pinochet fora ultrajante. No
entanto, o que salta aos olhos é a necessidade de perceber que a criação é
condição da diversidade, e ainda, uma não existe sem a outra. O fim dos preconceitos
entre adultos é a formação de jovens plurais. Na verdade, nem adultos, nem
crianças, nem homens, nem mulheres, a ontologia do humano não cabe nas
estruturas conceituais inventadas ao redor da história.
De
alguma maneira, “Machuca” acende a idéia de uma existência adolescente, sempre
em crise, pois, nos é de alguma forma ínsito esse estado de crise, de angustia,
diria Sartre. Isso nos torna humanos. Que ela perdure na inércia de um estado
de potência que pode ou não se tornar ato, mas que não pode ser forçado a se
atualizar e ferir de morte os outros potenciais que traz consigo. Isso
desemboca em outro poema, e com ele encerro:
Não
te atrevas ao silêncio,
preciso
do seu timbre,
anseio
o toque do seu paladar.
Todos
sem pudor.
Não
te deixe acuar.
Crave
os dentes.
Enrijeça
a luta.
Em
nada recue.
Tenha
em sua fronte um sorriso infinito,
faça
pulsar toda magia,
entregue
o corpo, salte sem ver atrito.
Depois
que as faces estiverem nuas,
o
excesso irromper do escuro,
um
brinde será regado de amor,
até
entornar.
Bernardo
G.B. Nogueira
Conselheiro
Lafaiete – primavera.
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