sábado, 16 de junho de 2012

Um café?


Um café?

Hoje bebo um café que acabo de fazer. Mas talvez fosse ainda melhor beber do café que eu mesmo houvera de plantar. Desde a escolha do grão até a espera para o dia certo da colheita. Fazer aragem da terra e cultivar cada momento daquele pé de café que me vai dar o que beber dentro em pouco. É como tomar as rédeas e não entregar pra ninguém. Se o café for amargo, falhei no plantio, se for leve, cumpri bem a labuta. Depois dessa forma de me acorrentar a mim, nunca mais poderia pedir socorro. Parece que é uma forma de suicídio lento ou de renascimento constante essa a de preparar o próprio café.

De alguma forma pensei que poderia estar com esses grãos e essa terra em minhas mãos. Depois tomar o café. Antes colher e sentir o cheiro. Mas vem sempre uma garoa ou outra. Sempre há um algo ou um porém. Porém, por causa disso, um café ruim fica bom e o café bom pode também ficar ruim. De certa forma essa deve ser a graça de estar com essas rédeas nas mãos. Ora, mesmo sob a máxima atenção e carinho não se pode prever o que vem. Aquela chuva que pode ser a salvação da lavoura e ao mesmo tempo pode ser a arma que aflige de morte a plantação. Todas essas formas variáveis de acontecimento roubam nossas rédeas. Toda a exatidão de cada cova desce feito nada com a lama da chuva que não perdoa nem o plantador mais cuidadoso. Assim como o sereno não respeita quando chega e quer queimar. Aí é o fim, o início ou a invenção.

Inclusive, é interessante como mais uma vez e sempre os paradoxos estão a nos rodear. Ao mesmo tempo em que o sereno molha, queima. Ao mesmo tempo em que a água da correnteza bravia molha, cria uma secura que impede a vida. Vida que nasceu da água que irriga a planta e que depois volta para matá-la, sem dó, imprecisa e precisa ao mesmo tempo. O paradoxo sempre cria. Porque nasce a vida do encontro entre seres distintos. Mesmo que um dia a filosofia antiga nos ensinara que já existiram como um só. Ainda assim, só nasce do desencontro, o encontro. Da secura, a lágrima. Do papel em branco, o poema. Do fim da estrada, a invenção. E acho que agora que terminei a xícara entendi o motivo pelo qual esse café, que é como tantos outros, igual e diferente, me trouxe até aqui. Quase sempre um café vem acompanhado de uma prosa. A prosa por sua vez é normalmente estabelecida entre duas ou mais pessoas. Mas não significa que não podemos prosear sozinhos ou beber café sozinho. Pode sim.

Quando pensei na possibilidade de manter o controle fui ingênuo como quem não acredita no amor. Essa sensação aparece por conta de uma solidão e um medo do passo que temos que dar em direção ao outro. Não há uma existência sem ele. E, ademais, o cheiro do café só tem sentido por causa de um olhar que vem à mente quando somos interpelados pelo seu aroma. Ou quando o paladar ativa uma memória guardada entre as vicissitudes de cada dia. Nesse sentido é que aquelas rédeas que queremos ter à mão na verdade não nos estão oferecidas. O plantio pode até ser cuidadosamente acompanhado por amor e carinho. Mas o evento café não está nem de longe passivo e entregue a estas tentativas de antecipações. Somos sempre surpreendidos pelo outro que vem. Pelo que é maior que nós, exatamente do tamanho daquilo que não podemos prever. Ao contrário da dose que pode ser medida, a embriaguez com que somos acometidos não cabe na xícara, tampouco pode ser prevista aquando do plantio.

Um café é um momento de possíveis nascimentos. Esse momento a mim foi revelado nesta tarde de outono. Fui lavrador, plantei, irriguei e colhi. Cheguei até a escolher os grãos e os moer e torrar. O café estava em mim desde o nascimento até a morte. Sempre em primeira pessoa realizei esse ritual de criação. De fundação de um novo momento, de um novo gosto. Cada gole foi uma história contada. Cada partícula daquele cheiro formava em mim uma sensação desconhecida e que não fora prevista quando comecei o plantio e quando terminei o café. Meus poros foram reinaugurados. Meus olhos se surpreenderam. Essa surpresa é da mesma ordem do encontro. E aí que o café se ajunta ao novo encontro. Somos tomados pela novidade do outro. Somos embevecidos de seu olhar, tomados por seu aroma, furtados de nós enquanto nos perdemos em sua imensidão. Que é infinita, imprecisa e imprevisível, e que é, portanto, linda e apaixonante. Pois o outro pode ser um sol radiante que faz a plantação viver, pode ser a chuva forte que leva embora todo o plantio, pode ser o sereno que queima a lavoura, pode ser uma a boca insossa que não se sensibiliza pelo sentimento do café. Estamos sempre à mercê desse outro que nos forma, nos realiza, ama e odeia. Não posso escolher o gosto que o café me trará, pois não posso escolher os olhos aos quais me irei apaixonar. Sei que dessa tarde ficou o gosto de um café infinito. Os raios do sol que entram pela janela e aquecem meu corpo e o sentimento de constante possibilidade pelo outro que virá, sem pedir licença, sem bater à porta e sem avisar. Pois quando é amor é assim mesmo, quando percebemos, estamos enamorados, igual ao café, quando percebemos, a xícara já se esvaziou.

Bernardo G.B. Nogueira
Outono – Conselheiro Lafaiete.

3 comentários:

  1. O café só é gostoso se tem mistério.
    Se você não sabe quem o plantou,
    quem colheu, quem torrou e quem moeu.
    Você não sabe nem quem passou.

    “Passar um café”.
    É assim que se diz.
    A vida, um amor, um café.

    Quando a água evapora
    é preciso contê-la,
    para que o café não se vá.

    Apenas com calor e pressão a água não resistiria.
    Mas aí vem um encontro e a água não é mais água.
    O pó não é mais pó.
    E quem passou?

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  2. E é por isso que a vida sempre será um eterno mistério tanto quanto a morte, não podemos escolher o gosto do próximo café, esses gostos são pra mim com o destino, temos que senti-los seja lá como forem,mas ao saborearmos o primeiro gole é aí que está toda a graça, é nesse momento que o poder passa para as nossas mãos,mas cuidado porque é apenas por um tempo...

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  3. Meu Deus... não resisti... Que coisa inútil!

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