domingo, 17 de junho de 2012

Entre a cordilheira, o Brasil e o velho continente, ou, um roubo para a vida


Entre a cordilheira, o Brasil e o velho continente, ou, um roubo para a vida

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Entre a Rio + 20 e a véspera da votação na recém classificada na eurocopa Grécia, recorro a um gole de vinho coincidentemente chileno. Coincidente, vez que hoje meus olhos tiveram um enlace com o filme “A dançarina e o ladrão”, originalmente chamado “El baile de la Victoria”, de Fernando Trueba, inspirado na novela de Antonio Skármeta.

Preciso falar de uma coisaa antes de exercer minha liberdade de olhar sobre o filme. E é em relação aos críticos. Parece-me estranho, mas na maioria das vezes, tenho a impressão que assisto a filmes diferentes daqueles sobre os quais os críticos escrevem, contudo, não irei criticar os críticos, senão criaríamos uma outra espécie, que talvez já exista: aqueles que criticam os críticos, mas isso seria tão enfadonho quanto as críticas que dizem que um filme que tem muitos clichês é ruim por isso. Talvez devessem ler o poeta que nos alerta: “todas as cartas de amor são ridículas”. Vamos aos sentimentos sobre o filme. Ridículos e não ridículos, “misturadamente”.

Muitas sensações são facilmente despertadas com a leitura desse filme. Desatento, como é o coração, aparece um cavalo a romper com uma sociedade ordenada com semáforos, faixas de pedestre, buzinas e silvos de policiais sem graça. Assim como é sem graça a vida sem música e sem qualquer tipo de dança, de subversão e de amor, de roubo. A tônica de um cavalo entre as pessoas é significativa - maior que uma crítica que alega ser um clichê. Na verdade, o paradoxo do cavalo em pleno voo entre os transeuntes faz com que reflitamos até que ponto a nossa racionalidade matemática tem prioridade ante a “desmedida” de um cavalo em meio à gente. Quando as pessoas entendem isso como algo extraordinário, fico a refletir se não mereceria maior assombro, ações que colocam um verso em menor escala que um artigo de lei qualquer. Preferimos a dureza das leis à sutileza do poema. Esse contraste deve explicar por que o galope primoroso de um cavalo causa aos seres racionais tamanho espanto. Não somos leves.

Mas fui direto ao cavalo. Deixem-me voltar um pouquinho para dizer um pouco do filme. Há ali algumas figuras que compõem a trama principal. Um ladrão que é lenda. Uma menina que é bailarina e não é nada. Um bandido que não é lenda e nem é propriamente bandido. O Chile pós-ditadura e um sentimento argentino, de um tango argentino. E assim como diz um antigo tango, “saído do subúrbio para o mundo”, tentarei cantar nestas palavras, do subúrbio do meu coração, para confins que só sei dizer em jeito de imaginação.

Logo que recebe anistia e pode ganhar a liberdade, Nicolás Vergara Grey (Ricardo Darín), por óbvio, como um claro clichê, sai à procura da mulher que amou e de sua família, e, claro, os encontra a viver bem melhor do que antes de quedar-se entre as grades. Nesse momento, encontra-se com outro que havia saído da prisão sob a mesma graça, Ángel Santiago (Abel Ayala). Este último, tem na lenda dos assaltos, Vergara Gray, seu próprio ídolo, e pretende com ele realizar um assalto que irá mudar sua vida  para sempre, nada mais clichê do que um ladrão pensar assim. Da mesma forma que é clichê ver Santiago a encontrar-se com Victoria Ponce (Miranda Bodenhofer), que viria a ser sua amada e a tornar o sentido da existência diferente para os dois recém libertados. Uma mulher a dizer o destino de dois homens, outro clichê. O fato de Ponce ser uma bailarina talentosíssima e estar à mingua nas ruas é o outro clichê. Poderia falar de outros, como o do criador de cavalos que é reconhecido pelo animal, contudo, penso que está de boa monta essa exploração dos clichês na obra, isso só para reconhecer o tanto que eles são leves nessa trama.

Gostaria de falar sobre Vergara Gray: se acaso ele é uma mostra de um ladrão mal sucedido, de outro lado, sob os olhos de Darín, transforma-se em todo o charme que o povo argentino carrega em seu olhar, com toda a sua certeza, seu vacilar e seu tango. Parece que a segurança do ladrão-mito contrasta com o humano em busca de um sentido que lhe havia sido furtado a partir dos roubos que cometera. A palavra sentido é o mote que me direciona nesse filme.

De sua parte, Santiago representa uma total ausência de peias em relação à nossa irritante sociedade politicamente nojenta e correta. “Enfia” um cavalo pelas ruas de Santiago e faz com os cidadãos polidos e pálidos sujem-se com a verdade de um animal em plena atuação, em face da fantasmagoria que fica bem representada quando a dançarina Ponce é rejeitada pela comissão avaliadora do teatro municipal. Ali as expressões acerca da fisionomia da garota são realçadas pelos jurados, num claro apelo há um mundo aparentemente real, no qual o porteiro ereto se assusta ao ser obrigado a segurar as rédeas de um cavalo. O real é assim, não avisa, nem coloca uniforme, por isso que amor é um só, o verdadeiro, assim como a poesia.

É claro que o amor é o irmão siamês do sentido aqui. Isso é mais um clichê. Da mesma maneira que é clichê ver uma primorosa dançarina estar relegada sem identidade e ser encontrada por um ignóbil aprendiz de bandido, posto que fora transformado em um, posto que fora obrigado a sê-lo, sem ser. Na verdade, os rostos de Ponce e Santiago são uma mescla de perdimento e doçura, outro clichê que embala a coisa toda do amor. É a tragédia de um jovem que tem seu sentido furtado, é a tragédia de uma jovem que tem sua fala também furtada.

O regime de Pinochet, encenado em alguns momentos, também é um dos componentes que fazem interessante a questão do filme. Pois, além do clichê do amor, do perdimento e de todos que falei, há um outro que é irresistível: o clichê de que o amor somente o é se for inventado. Então, ladrões se unem para invadir um teatro e colocar no palco a bailarina emudecida pelo regime. Invadem a instituição e subvertem a ordem, e agora o que reina é o delírio da dança e da poesia, apadrinhado pelas mãos dos ladrões e assistidas com louvor por quaisquer olhos que se queiram reais, nus como os cavalos. Roubar o regime, saquear seu dinheiro, foi também uma forma clichê de trazer a voz para a dançarina. Falaram ali os oprimidos, falaram a partir de uma face estranha que as instituições costumam costurar na vida das pessoas.

A dançarina cumpriu seu papel clichê. Musa de dois destinos. Como é belo um clichê em que lábios infinitos fazem apaixonar. Como é belo o clichê em que os passos de uma dança fazem revigorar a alma que resta na sarjeta de uma vida em que não há poesia, não há música e que não se curva ao reclame impreciso de uma esquina sempre a bailar de mãos dadas com a ideia de um novo amor. Como é belo o clichê de amar sem documentos. Como é belo o clichê de roubar o amor, de perceber-se furtado pelo ato de amor de outra pessoa. Pelo fato de ter seu futuro desenhado a partir do olhar apaixonado do outro, grande roubo, diria.

Vergara Gray procurou o sentido depois que saiu da prisão. Junto com Santiago – cada um com sua finalidade – tentou, a partir do roubo aos cofres de Pinochet, encontrar um sentido para sua vida fora da prisão. Isso não o faria reconquistar a família. Ele não servia mais. Claro que para manter o clichê também haveria a necessidade dessa tragédia familiar para um cara que sai da prisão. De outro lado, Santiago, também, através do roubo, queria imprimir um sentido à sua existência. Ter dinheiro para comprar o cavalo que o levara até a prisão erroneamente e partilhar de uma vida boa com sua dançarina. Os dois se valeram de uma mesma estrutura para modificar sua existência. Contudo, me parece, o grande lance disso tudo nem estaria na ideia do roubo em si. Ora, mesmo havendo promessas, planos e previsões por parte dos dois para saber o que fariam dali em diante, um evento já os havia enternecido: o olhar, a boca e a dança de Victoria Ponce tinham já enfeitiçado e criado neles uma nova subjetividade, na qual todas as miradas apontavam para a construção de um sentido a partir e desencadeado por aquela dança, e assim, por serem movidos por um bailar, que é também uma forma de poetar, o sentido agora era um sentido de amor. Santiago morreu por ele e por ela. Gray, não se sabe, ou sabe-se apenas que fora ver o tango.

A Rio + 20 e a Grécia podem dar seu testemunho dessa ideia: dançarinos de uma nova melodia ou ladrões de si mesmos? Aquele evento, se não continuar querendo roubar para viver, poderá manter a vida no planeta, este país, se mantiver a chama de seus antepassados e se quiser livre, permitirá a vitória de uma nova subjetividade em face do regime, não o de Pinochet...

Bernardo G.B. Nogueira
Outono – Conselheiro Lafaiete

Um comentário:

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