segunda-feira, 4 de junho de 2012

deuses e homens


deuses e homens
FILME - A Pele Que Habito 

A película a que nos iremos transvestir é mais uma obra de arte de Almodóvar e nos surpreende pela profundidade dos temas tratados e a contemporaneidade das discussões.
O enredo nos envia a reflexões acerca do modus como nos relacionamos com o outro na contemporaneidade. O quentume das cores de Almodóvar contrasta com a frieza dos experimentos científicos. A destreza do cirurgião é paradoxal em face do Tigre. A liberdade da ciência é paradoxal em relação à contingência própria do humano. Aliás, em melhores palavras, poderíamos mesmo dizer imprevisibilidade. Assim, o enredo nos toma com problemas existenciais que vão desde uma traição com consequências extremas, até questões que envolvem a bioética, a evolução do pensamento científico, problemas psicológicos e apropriações de classe. Seria uma crônica bem colocada de vicissitudes que tomam o humano na contemporaneidade.

Os personagens interagem em uma trama, que mistura suspense, drama e um tanto de terror cômico. Nesse sentido, é que a dose de humanidade em Almodóvar fica mais evidente. Ora, ele deixa jorrar pelas ações do médico pesquisador, a sanha científica que impera nos dias atuais. Assim como, retrata em sua própria filha a esquizofrenia generalizada que nos assola. A comicidade fica por conta de “Zeca”, irmão do médico sem escrúpulos e filho da governanta, que é também o retrato da inautenticidade de algumas vidas com que nos deparamos diariamente.

Não poderia dizer que é um filme que trata meramente de questões cotidianas, mas poderia sê-lo. Quando nos questionamos acerca de nossas relações diárias, vemos como Almodóvar retrata bem isso por aqui e ali. Ora, também no filme “Fale com Ela” vimos o espanhol a dizer-nos de uma necessária atenção às questões éticas no ethos da medicina. Tenho a impressão que “A pele que habito” é antes de mais nada, um filme que traz um reclame ético e de formação da identidade. Uma necessária mostra da atenção que devemos ao outro e que, exatamente pela liquidez do momento presente, necessitamos revisitar. Nesse mesmo rumo, podemos ler outro reclame quando percebemos um dos problemas que o capitalismo também propicia, ora, quando Robert sequestra Vicent, enxergamos as apropriações que as classes dominantes realizam em face das classes menos favorecidas – um médico sequestra a vida de um funcionário de uma loja de roupas, nada mais evidenciador de uma desigualdade que é latente no modus de vida em que reina o capital.

Não há, na trama, nenhuma relação que não envolva esse reclame ético; não irei passá-las em revista, contudo, Robert está envolvido em experimentos que deixam a comunidade médica preocupada: seus comparsas são enganados, ele não se importa com o outro que se torna outra, com a mãe que não sabe o paradeiro do filho, com uma identidade que é furtada a partir de suas intenções de vingança e frustração patológicas. A sua governanta, que também é sua mãe, não se importa com a morte do filho que só lhe traz contratempos. A esposa de Robert não se preocupa com nada quando se depara com sua realidade estética. O amor e a loucura convivem também com o personagem de Robert. Pois, poder-se-ia mesmo argumentar que toda a dedicação de Robert por salvar sua esposa seria a maior prova de amor, ou, como veremos, a maior prova de loucura. Bom, descobrimos aqui mais uma face do filme. Trata, também, de relações amorosas, mesmo que relações as mais diversificadas e diferentes. A relação de amor do cirurgião com sua obra. A relação de amor de um homem com uma mulher que ele quis eterna. O amor versus a sanidade, o amor em oposição à nossa finitude, humana.

Deuses e homens. Esse traço fica presente no filme quanto Robert não deixa morrer sua esposa. Quando não deixa morrer sua filha psicologicamente comprometida. Pois, em ao se utilizar do jovem que supostamente a havia violentado, comete algumas transgressões humanas, que desde sempre foram relegadas aos deuses – não podemos imaginar maior questão ética do que esta. Penso que este é o nó górdio do filme e que deixa claro  também as apropriações que uma estrutura causa ao sujeito que em ao se deixar levar, torna-se antes de tudo, assujeitado,  impedido em face de sua existência autêntica, que aqui chamei de identidade. Robert ao tentar ser deus nunca será humano. Ao mesmo tempo, daqueles que se apropria, também leva a identidade, assim como a morte leva o espírito deixando um corpo que dorme.

Mirem: o fato da filha de Robert ter sido supostamente violentada não o outorga a possibilidade de realizar justiça com as próprias mãos, no entanto, é o que ele faz o tempo inteiro no filme, e daí questionamos: o saber científico afastado da ética em relação ao outro não elevaria o humano a um patamar maior que ele e por isso mesmo causador de problemas que nem ele poderia resolver? De outro lado, frear a evolução científica seria possível? Seria mesmo válido fazê-lo? Quais os limites da pesquisa? Maquiavel justificava os meios se acaso os fins fossem alcançados, estaríamos, desde agora, condenados a isto perante os experimentos científicos?

Da mesma forma que Robert se apropria, divinamente, de sua vítima, ele a recria, constitui para ela uma nova forma de vida, um novo rosto, um novo nome e um outro sexo. O homem substitui o deus e em seu trono realiza tudo aquilo que não era permitido quando ainda era humano. Estaríamos, portanto, criando uma nova forma de humano? Ou, no extremo, isso que entendemos por homem não seria mais parâmetro para fazermos esses questionamentos?

Assim, a morte fica preterida em relação ao rosto que se repete em outra pessoa. A vicissitude de uma traição é resolvida com a morte, indiferente. A vingança é realizada pelo furto de outra vida. Os temas, vida, autenticidade e liberdade são o mote último que nos irão conduzir. Robert, ao se apoderar de Vicent, o torna Vera. Vera, ao se tornar mulher, não é mais Vicent, o é apenas à medida de Robert. A ideia de morte, como já fora superada pelas possibilidades científicas, nem é contraste com a ideia de vida. Portanto, banalizar o evento morte nos leva a banalizar também a vida, e assim o outro, e ao fim a nós mesmos.

Quando Robert se apodera da existência de Vicent, percebemos uma face sórdida de nossa sociedade atual a se revelar. Estamos extremamente egoístas, egocêntricos e carentes. Robert, longe de ser vilão, é só mais uma engrenagem da irrealidade a que estamos lançados, pois, por mais que a existência de Vera pareça irreal, não menos disforme é a de Robert, que inventa/quer inventar, como num joguete de marionetes, o que virá. Utilizar-se dos avanços científicos para vingar a filha ou para manter viva uma esposa amada é só mais uma forma encontrada para tentar manipular o tempo - nosso eterno vilão - que nunca será conseguida, pois, as consequências de nossa imprevisibilidade são sempre maiores.

Nesse sentido, apoderar-se do outro e torná-lo à nossa medida é o que ocorre em todas as relações que não se querem éticas por excelência, pois, antes da racionalidade o homem se compõe de eticidade, precisamos do outro para existir, e, quando criamos esse outro, deixamos de existir, pois o espelho não cria, apenas reflete. E uma existência presa à nossa imagem, é menor, por evidência. Robert não apenas furtou a vida de Vicent. Ele revelou uma face do humano que desde a muito nos acompanha. Sempre queremos superar os deuses apoderando-nos daquilo que são seus valores, sempre ávidos por ocupar seu lugar – isto é nossa tragédia e nossa comédia.

Robert nunca mais terá sua mulher. Nunca mais terá sua filha. Nunca mais terá sua existência. Uma vez que a única possibilidade que temos para estar no mundo de maneira autêntica é estamos solícitos àquilo que nos é ínsito e impossível desvencilhar: o tempo. Ele nos mostra os limites e as possibilidades: isso em cada novo olhar, cada nova fatalidade, cada novo sorriso. Sempre nasce em nosso íntimo um novo ser humano, que não está à mercê do invento alheio, sob a grave constatação de que o inesperado não mais irá nos acompanhar, aliás, isso nunca deixará de existir, pois, mesmo tendo a melhor pele, Vicent não quer ser Vera, porque Vicent é quem constrói sua existência: livre, errada e em acordo com sua magia, que nunca poderá ser criada e nunca poderá ser substituída.

De tudo, o humano ainda dá provas de sua santidade quando não aceita o outro a vilipendiar sua face a partir de suas vontades. As revoltas de hoje são, em verdade, o novo que se cria a cada manhã, que não aceita uma noite imposta e que quer viver a cada instante o gozo de sua inconstância, da sua errância, de sua criação. O outro é o que eu serei enquanto permiti-lo outro. De outra forma, some o outro e eu mesmo deixo de existir. A ética dramática, narrada por Almodóvar, é para mostrar o quão perverso pode ser um humano, que ao invés do outro, vê no próximo um espelho e que quer refletir nele suas próprias vontades. A poesia da vida está no olhar do outro, sempre a partir daquilo que vem, sempre a partir daquilo que nos convida a ser, sempre a partir daquilo que não sabemos. Senão, a pele não nos mostra a nós mesmo apenas nos faria habitar.

Bernardo G.B. Nogueira
Outono - Itabirito

Um comentário:

  1. os filmes do Almodóvar são incomparáveis e pra muitos incompreensíveis pela complexidade em que retata os sentimentos, eu particularmente adoro.

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