segunda-feira, 14 de maio de 2012

Enquanto isso, fora do espelho...


Enquanto isso, fora do espelho...

Há um conto do escritor argentino Jorge Luís Borges em que ele narra a relação do mundo dos homens com o mundo do espelho. Diz Borges em seu conto que em um tempo muito distante, as criaturas do espelho viviam em paz com os humanos, entrava-se e saia-se do espelho sem problemas. Contudo, em uma noite, as criaturas do espelho invadiram a terra e mesmo que seus poderes fossem manifestamente fortes, o Imperador Amarelo conseguiu vencer as criaturas especulares e lançou um feitiço que as condenou a uma vida presa às formas dos humanos e que as obrigava a repetir tudo que estes fizessem. Mas Borges advertia, um dia as criaturas especulares insurgiriam do fundo dos espelhos e se rebelariam contra os humanos. É, sem dúvida, um conto intrigante que pode ser lido sob vários aspectos.

A democracia, conceito criado pelos gregos antigos, recebe hoje os maiores louros enquanto forma de condução política de um país. É uma ideia solidificada no imaginário dos cidadãos. Ideia que se coloca como garantidora de um tratamento isonômico em relação aos indivíduos dentro do estado. Por óbvio, isso não pode ser visto sem cuidado, sem um olhar crítico. Ora, o fechar de olhos dos cidadãos deixa a polis órfã e mina com qualquer possibilidade de manutenção e realização dos direitos fundamentais que alicerçam a democracia e que devem ser garantidos a todos indistintamente. Essa atenção à práxis da cidade, leia-se, à vida política, é uma forma do homem se reconhecer enquanto tal, pois, como nos adverte Aristóteles, o homem é um zoon politikon. Quer dizer o filósofo, que o homem só se considera enquanto tal, quando participa da polis, quando é cidadão. Frise-se, essa democracia realizada no momento do voto não é nem de longe o bastante para dizer que temos todos os princípios democráticos realizados. É o voto, um dos momentos da democracia, não o único, menos ainda o derradeiro. A perpetuação da democracia se dá quando a imagem do espelho não destoa da imagem do mundo dos humanos.

A relação de quem é votado com quem vota, sustém a ideia de democracia, ou seja, essa relação serve para dizer se há uma democracia real ou uma democracia especular. Partirei nesse momento para o objetivo deste texto.

Vivemos em tempos em que algumas criaturas dos espelhos estão a se rebelar contra os Imperadores Amarelos. Desde o movimento de ocupação de Wall Street, manifestações de estudantes em Bogotá, levantes em uma França discriminadora e racista, até à evidenciação de que o capitalismo financeiro é um “modo de vida” excludente e opressor - todos estes indícios de que os povos do espelho não mais se contentam com a maneira inerte e disforme que lhes é imposta. Nesse sentido, parece que o feitiço da democracia especular anda a ser dissipado por uma nuvem de verdade que ronda a caverna de Platão. Quando me refiro à democracia especular, estou a dizer que por vezes a forma de atuação dos representantes se dá na medida do feitiço que o Imperador Amarelo lançou sobre os povos do espelho. Manuseiam suas armas para instalar a inércia e o silêncio, e furtar a vida mesma dos cidadãos. Querem-nos assemelhados a imagens, apenas a refletir – interessante o uso que esse termo pode possuir - absortos pelo seu feitiço, enquanto passeiam, se equilibrando com a ajuda do seu exército, que tenta garantir que nunca serão incomodados e/ou ter sua legitimidade - obtida nas urnas - colocada em questão. Em uma imagem sugerida por Zizek, enquanto nos colocamos em frente à tela do cinema e nos entretemos com uma realidade criada e facilitada pelo 3D, por trás da tela há uma festa bacante da qual não somos convidados, mas que estamos a patrocinar.

E como se tudo fosse mesmo real, me deparo com o dia doze de maio do ano de dois mil e doze. Dentre outras coisas, essa data já estava a me tocar, uma vez que um dia antes fora meu aniversário de vinte e nove anos. E como não mais estou a morar em Conselheiro Lafaiete, nem pude comemorar meu aniversário com minha família que se radica aqui. Mas, já nos diz a canção, “aos vinte e nove, com retorno de Saturno, decidi começar a viver”. Portanto, meu primeiro dia com esta ideia de vinte e nove parece também ter sido o dia de nascimento de vários outros cidadãos, e mais ainda, da saída definitiva do espelho de algumas criaturas que estavam lá.

A passeata contra a corrupção em Conselheiro Lafaiete é uma mostra aos Imperadores Amarelos, que nós sabemos que por trás da tela do cinema há uma realidade que não chega até o grande público. É uma forma de os cidadãos lafaietenses se portarem de maneira autêntica perante sua existência, e firmar-se como cidadãos, como zoon politikon. Tornarem-se pessoas a partir do que diz Aristóteles. No entanto, aqui não é o momento para tentar descarar os desmandos realizados por detrás da tela. Mas é o momento de enviar um aviso aos humanos de fora do espelho:

As criaturas do espelho estão aqui, e que elas não sejam subjulgadas. As tropas dos Imperadores Amarelos hão de ser vencidas pela ação dos seres do espelho que, ademais, no conto de Borges, serão ajudados pelas criaturas das águas e vencerão os humanos. Assim, para os humanos que não entendem o que são as criaturas do espelho e as criaturas das águas, devem agora se acostumar a uma nova forma de vida. Uma existência que não seja mesquinha, inerte, aproveitadora e individualista, pois, unir-se contra os Imperadores Amarelos, é, desde já, uma forma de parir um novo espécime ainda desconhecido porque há muito adormecido dentro do espelho. Adormecido e amordaçado pelos Imperadores Amarelos.

Doze de maio de dois mil e doze. Data para marcar uma parturiência coletiva em Conselheiro Lafaiete. Dia em que novos cidadãos nasceram. Dia em que a democracia especular deu lugar à democracia real. Dia em que a tela do cinema foi derrubada e as criaturas que viviam lá atrás ficaram receosas de se verem expostas. Dia em que “o rei ficou nu”. Dia em que Conselheiro Lafaiete pode marcar como uma nova emancipação, pois foi nessa data que “aprendemos a viver”, porque foi nesta data que o povo do espelho deixou de ser imagem e tornou-se a cena viva da cidade.

Bernardo G.B. Nogueira
Conselheiro Lafaiete
outono – 12/05/2012

2 comentários:

  1. Parabéns pelo excelente Texto,conseguiu colocar em palavras todo o meu sentimento enquanto organizador da marcha.
    A partir de hoje seremos sempre "Cena Viva" não nos calaremos,não nos esconderemos,MOSTRAREMOS A NOSSA CARA!

    Daniel Eduardo Pinheiro Magalhães

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    1. Caro Daniel, obrigado pelo elogio. A única maneira de existir é criando a existência. Abraço. GB Nogueira

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