segunda-feira, 5 de março de 2012

Silêncio e aplausos



Silêncio e aplausos

As ideias que movem essa escrita não estarão torneadas por intenções técnicas de análise de uma obra de arte. Em verdade, a obra de arte, por ser necessária ao nosso entendimento como humanos, tira essa responsabilidade quando tentamos tocá-la. Seria uma espécie de alusão ao fio de Ariadne, uma vez que, quando acaso alcançamos um bom conceito, o que é a obra de arte, supera, recria, inventa. Intenta contra o absurdo de qualquer vida que não tenha arte, que não seja humana, diria.

O filme “O Artista”, multipremiado na última cerimônia do Oscar, trouxe um sentimento desses que realmente faz valer à pena. Nada mais. Ora, em um momento no qual alguns paradigmas estão a ruir; refiro-me às questões inevitáveis que assolam o modelo do capitalismo financeiro, também me reporto a um modelo que a própria indústria cinematográfica acabara por criar. Isso, aliado àquilo que alguns autores chamam de o “hiper-real”, ou seja, as criações tornam-se mais reais que a própria realidade, e nesse desejo irrefreável de alcançar “a batida perfeita”, o homem se torna um zumbi de sua própria existência, que, por sua vez, é apenas real, não “hiper-real”.

Afora as discussões sobre a “Indústria Cultural” e o que ela cria - o que ela manipula e torna ideologia negativa - podemos, certamente, colher um pouco de realidade humana nas telas de cinema. Quero fazer um paralelo de pensamentos e sentimentos que me forma suscitados ao assistir os filmes: “O Palhaço” e “O Artista”, de Selton Mello e Michel Hazanavicius, respectivamente.

Aquilo que vimos acontecer com a cena artística na era chamada de pós-moderna se confunde exatamente com o que de mais comezinho ocorre nas relações humanas. Há algo de necessariamente espetacular sendo esperado para o próximo piscar de olhos, para a próxima cena, para o próximo aplauso e para o próximo clique. Não há tempo para reflexões demoradas sobre a existência. O tempo - certamente aquele que é o mesmo dos tic-tacs dos relógios, seja ele, de parede ou não - deixa claro a imediatez desse imperativo. Hiper-ativo. Daí que esses dois filmes me fizeram sentir a mesma sensação. Assim, se de um lado, o Palhaço tem um conflito existencial diante de sua “profissão”, dos rumos que tem e das implicações que ela traz, de outro, parece-me que se encontra de alguma forma com o “drama” enfrentado pelo personagem do filme “O Artista”, que se encontra em meio a uma transição de perspectiva cinematográfica. Vamos a eles:

No primeiro, o personagem de Selton Melo tem uma crise de identidade. Assim, sem muito esforço percebemos que essa crise tem estreitas ligações com o fenômeno da espetacularização da existência, que segue de mãos dadas com o mote consumeiro-imediato-alienante, que rege a sociedade de massa. Pois, é difícil ao indivíduo alienado, compreender que o circo faz com que as pessoas transcendam as arquibancadas de madeira e sintam-se insufladas de humanidade pelo singelo e pelo que é digno no Palhaço. Ele não lhes faz promessas, não tem efeitos especiais e não ensina como ficar mais jovem e rico. O Palhaço, quando muito, ensina a viver o que é do humano. Sua capacidade inventiva, sua transcensão do mundo, sua criação do novo a partir do mesmo. A humanidade dentro do circo é latente. Tão latente que em um mesmo picadeiro o palhaço ri e chora. Diverte e encanta. Sonha e faz sonhar. Não há mais humanidade do que nesses duplos tão próprios ao homem. O homem, na figura do palhaço, está vivo: simples, infantil, sincero, frágil, vítima e algoz, do riso e da dor.

Assim, quando o palhaço entra em crise, entramos nós também. Quando o “hiper-real” falacioso angustia o palhaço, sentimo-nos em perigo, ou, deveríamos nos sentir. Quando a sensibilidade é afetada pelos reclames irreais do consumismo e da necessidade de deixar o velho e criar o novo, de abandonar a lona e aplaudir o neon. É este um momento de crise, não simplesmente por deixar a lona para trás, mas por saber que o mundo do palhaço, intocado, porquê autêntico, porquê inventado, foi afetado pela farsa que sustenta uma realidade mentirosa. Fugaz. Sem história e sem sentimentos. Imediata como a vida e a morte de um personagem criado pela mídia.

Na relação que queremos, “O Artista” comparece, para além de todas as nuanças técnicas - que disse que não iria falar - a mostrar também um momento de crise, de ruptura. O personagem de Jean Dujardin vive exatamente um desses momentos de rachadura, do tal velho com o tal novo. Mas, o que seria velho e novo na arte? A idade das obras de arte deveriam ser medidas com algo que aufere o número de arrepios e lágrimas nos olhos? Com o nível de imaginação que causa? De torpor? De transcendência? Bom, independentemente dessas colocações, o filma mostra bem o declínio do cinema mudo e a aparição da fala no cinema. Uma alusão bem direta, a propósito do momento em que vivemos no qual o “palavrório” comanda a massa. Sem falar do gosto acre que sentimos hoje com o excesso de realidade. Isso eleva a vontade de antídotos extremos: o retorno empreendido aqui, e também na epopeia circense, são boas medidas deste descontentamento.

Portanto, nesse filme presenciamos a arte em sua plena aparição diante do humano. “O Artista”, de forma interessante, tem a mesma composição de nome que “O Palhaço”.  
No próprio título da película, o destaque para o substrato essencial que move esses dois enredos. É arte dentro da arte. Circo dentro do cinema. Cinema dentro do cinema. Satisfação e rendição do homem ao que lhe é maior: a arte que sai dos poros dos personagens, que em nenhum momento deixam de ser homens, frágeis, reais. De certa forma, mostraram também que há mais arte por detrás dos holofotes radiantes, das cores infinitas e dos diálogos bem postados. A linguagem que faz comunicar a arte é dada por ela mesma. A matéria da arte é o homem, e uma das formas dele se comunicar é através do silêncio. Silêncio do artista mudo diante da nova atriz que é o bastião do modelo falado, silêncio diante da bilheteria vazia, silêncio diante do bar que lhe resta e do brilho que ofuscou sua vida, vida que não mais o quis artista.

Essa relação de silêncio também fica presente na crise enfrentada pelo palhaço de Selton Mello. Ele vaga a esmo para encontrar algo e fugir de algo. Contudo, quer mesmo encontrar a si e fugir de si mesmo, necessário e impossível ao mesmo tempo. Paradoxal. Humano. Dessa forma, descobre-se a si mesmo, o desafio maior. Aí reside toda a dignidade, a candura e a arte de ser palhaço, pois: “o gato bebe leite, o rato como queijo, e eu sou palhaço.” Contudo, não sou eu quem sou o Palhaço, o Palhaço é que há em mim, isso é inevitável quando a arte toma. Parece que em “O Artista”, o personagem vive o mesmo, pois seria realmente indigno de existir se não mais pudesse ser Artista. Pois o homem não é o Artista, é o Artista que é o homem. A mesma dignidade do Palhaço comparece no Artista. Eles não são, senão, Palhaço e Artista. E exatamente nisto que implica a grandeza da arte a justificar a vida. Ela é maior, e de tão maior, quando não tem seu espaço respeitado, rebela-se.

Quando o artista traz ao público uma justificativa para sua vida a partir da arte, ele também está a justificar a sua. A fazê-la ter sentido. Não haverá, por certo, arte fora da vida, mas, sem dúvida, a vida sem a arte se apresenta um tanto menos humana - um tanto menos artista, um tanto menos palhaço. Assim, como nos falou Badiou, estar enamorado é uma forma de rebelar-se contra o status quo que nos assola. Parece-me que o silêncio, a ausência de cores, a lona, a lágrima e o sorriso do palhaço, são formas plenas de estar-se enamorado. Não por uma mulher ou homem escultural com uma beleza criada pela próxima tendência do cinema, mas sim, por uma forma de vida autêntica, real, e repito, apenas real! Com sentimentos, frustrações, despedidas e chegadas, aplausos e silêncio. Amor.

Bernardo G.B. Nogueira
Itabirito – 05/03/2012 



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