quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Sem Herois

Sem Heróis

Scarcéus

Algo aconteceu foi de repente, forte, um soco, bruscamente
iminente consciência.
Algo se rompeu incontinente, o lacre, um elo da corrente
expulsando a inocência.

Como um sonho brutalmente interrompido.
Como se o corpo fosse feio e proibido.

E se abriu confuso e frio um mundo sem heróis
fez do ser humano um animal vil e feroz.
Sem saber pra onde ir não há nenhum lugar seguro agora.

Algo enfureceu o universo, a boca e o verso se fartaram
de tolices e injúrias.
Algo perturbou o ambiente, fez as coisas diferentes
e ninguém se reconhece mais.

Como se tudo não fizesse mais sentido.
Como se nada se mostrasse claro e definido.

Quem são os herois?

Advirto, de pronto, que não estou aqui para explicar a história da canção e muito menos tentar restaurar dos escombros o momento da criação e de inspiração de seus autores. Seria, desde já, tarefa inglória e impossível. A criação, parece-nos, é um momento em que confluem variegados sentidos, histórias, algo de razão e um turbilhão de sentimentos que uma sua identificação é tão possível quanto fotografar um pássaro em pleno voo. No sentido de que uma canção é também o desenvolvimento que ela possui quando se coloca em encontro com o ouvinte é que gostaríamos de partir.

Há um niilismo intrínseco nos dizeres da canção que já prenuncia um momento de ruptura em seus primeiros versos, “algo aconteceu foi de repente, forte, um soco, bruscamente (...) algo se rompeu incontinente, o lacre, um elo da corrente”, e por aqui é interessante perceber que há uma interlocução entre o momento histórico vivenciado pelos homens na contemporaneidade, ora, depois que Nietzsche matou deus e após as incessantes tentativas do homem de alcançar o tempo com suas mãos, nem sempre as mais singelas, nada restaria mais a crer, e a entrega do homem à sua sorte parece-nos algo inevitável.

A ruptura é tarefa comum à história do humano desde sempre. Assim, enquanto com os gregos antigos, as tragédias foram utilizadas para evidenciar uma ruptura com as preocupações cosmológicas para uma nova ocupação com uma polis nascente, o cristianismo vem dizer a boa nova e romper com o politeísmo reinante e, dessa forma, colocar o homem à mercê de um mundo bom em um além vida – paraíso – a contrario sensu do mundo pagão e maléfico na Terra. Na modernidade, vivenciamos um pensamento entregue à sanha racional que instaura o cogito no modus do homem entender-se a si mesmo. Daí em diante, a racionalidade cartesiana se irá converter em técnica científica dentro do pensamento contemporâneo, e a partir dos fins do século XIX, o pensamento humano ruma para uma descrença nas estruturas paradigmáticas que sempre sustentaram a sua própria existência.

Como a filosofia nietzschiana põe fim às metafísicas que tentavam dar conta da existência humana, e, “como um sonho brutalmente interrompido”, o homem toma as rédeas do novo mundo em que a técnica torna-se a própria metafísica e a relação entre estes mesmo homens se dá a partir dela, o que vem anular qualquer sentido, ora, é evidente que o pensamento capitalista, que hoje se transveste de um consumismo quase alucinógeno, acaba por anestesiar a sensibilidade humana e precisamos recorrer a mais técnica para que mantenhamos o sonho de que ainda somos humanos.

Não é difícil entender que “algo enfureceu o universo, a boca e o verso se fartaram de tolices e injúrias, que algo perturbou o ambiente, fez as coisas diferentes e ninguém se reconhece mais”, uma vez que inseridos em um orbe capital e consumeirista, as relações humanas não mais existem em verdade. Estar diante do outro, não é estar diante do outro – humano – é colocar-se diante daquele que tratado como meio poderá trazer alguma benesse, quase sempre a alimentar a gana consumista: seja do corpo, seja dos bens materiais, seja do espírito, seja da alma. Não vendemos a alma para o diabo como os antigos diriam. Em verdade, transformamo-nos nele mesmo quando furtamos uns dos outros a possibilidade de sermos crianças: “expulsando a inocência”.

O retrato dessa imersão em uma inércia de sua própria vida é facilmente manejado pelo mercado capital – desde as inocentes criações chinesas até as mais letais armas de destruição em massa. O sentido é fabricado a cada dia, a cada hora ou a cada segundo. Estamos sempre à beira da obsolescência, que já lembrada por Gessinger, é sempre programada. Estamos sempre à beira de uma depressão, à beira de mais um carnê de compras, à beira de uma solidão em meio à multidão, à beira de um precipício que na verdade nem existe, mas que as formas líquidas de relacionamento humano acabam por inventar. Estamos à beira de mais uma igreja, que amanhã será um bar, mas que por ora resolve o problema: seja de um vício, o fim de um romance ou mesmo por perder um emprego. Nesse tempo, também não podemos deixar passar o mercado dos remédios psiquiátricos, que também percebeu bem o momento de uma “histeria” generalizada e está pronto a receitar um sono mais tranquilo ou um dia sem melancolia ou tristeza. Não podemos mais ser tristes, ditam os deuses da auto ajuda. Nossa(!), são tantas as possibilidades de sermos herois: podemos também tornarmo-nos eterna e pateticamente jovens, haja vista as pessoas que insistem em lutar contra o tempo e não assumirem uma fase da vida em que deveriam partilhar com os jovens suas histórias e criarem juntos, mas não o fazem, estão preocupados com a próxima toxina botulínica que irão injetar no rosto. Heroi não envelhece, ora!

Que o mundo está “confuso” é algo evidente. Mas como o homem vive sem seus herois? Na verdade, não vive. É de nossa própria característica inata a possibilidade de prometer, de transcender e de criar, precisamos de um esteio, de um terceiro garante. Ele já foi deus, já foi o estado, mas e agora, “e agora José”? Bom, agora que a “festa acabou” e “se abriu um confuso e frio mundo sem herois”, cabe ao homem sua própria capacidade inventiva. Assim, penso em apenas algumas advertências para o cerne desta bela canção: Não é que o mundo de hoje esteja sem a benção de seus herois, parece-me que não. Parece-me que diante de um tempo cada vez mais fugaz, estamos preguiçosos e pouco reflexivos, talvez reflexo do cansaço que nosso status de consumidor causa.

Os herois estão aí, como sempre estiveram. O problema é que ficamos tão “espertos” e tão “competitivos”, que não conseguimos mais acreditar neles. A sensibilidade para aquilo que não é tangível economicamente tornou-se impossível. Não posso investir naquilo que não me trás retorno financeiro, e por aí vai a nossa torpe racionalidade atual. Contudo, assumir esse paradigma, é também aceitar que de alguma forma sua existência, em algum momento, será alvo desse tratamento funcional. Não podemos nos espantar se em alguma esquina estivermos a servir para alguma coisa, assim como podemos amanhã não servir mais. “Sem saber onde ir”.

A ruptura é sempre marca que acompanha a história do ser humano, isso é inevitável dada nossa essência criadora. O vazio parece instaurar-se por vários motivos além de alguns que aqui cuidamos. Mas falemos da grande questão dos heróis: Eles não podem ser criados por imagens, sons ou moldes fabricados pela mídia mentirosa e volátil, é fácil perceber o quanto isso é falacioso, pois a história destas criações se encerra com a criação de outra fantasia e assim por diante. Parece que a encruzilhada nos aponta dois caminhos: o do turista e o do peregrino. Aquele, tem sempre intenções finalistas de chegar mais rápido a um local: sem ser importunado, sem amassar a roupa, sem contratempos, sempre com o máximo de gozo e prazer. Ao peregrino, o local de chegada é apenas uma parte de sua jornada; jornada que é muito mais que um caminho. Trata-se do momento em que constitui sentido à sua existência: as paisagens, os contratempos, os descaminhos, os erros, a roupa suja, os sorrisos e as mágoas, são todos componentes desse peregrino, que não se furta às mazelas da existência humana, pois, elas também são parte daquilo que chamamos humano.

Podemos ilustrar essa ideia com uma lenda dos aborígenes australianos, que, nômades que eram, sempre que chegavam à porta de uma caverna, sentavam-se à espera de sua alma. Da alma de heroi que haviam se tornado a cada jornada vencida. Heroi que o turista não poderia se tornar, pois, ele não carrega bagagens, não sente o sol no rosto, não é tocado pela brisa da manhã e nem sonha com o outro lado da montanha, ele não as enxerga de dentro do avião. Está anestesiado pela hipótese de frear o tempo com mais uma dose de felicidade comprada em um consultório ou em uma boca de fumo.

Os herois de hoje, depois que perdemos a crença nas metafísicas, não precisam ser grandes, inacessíveis ou impiedosos. Não precisamos mais deles. Carecemos de herois com olhares, sentidos e sentimentos bastantes para perceber, que a cada gesto de amor, em verdade, temos um gesto heroico. Este sim, o único heroi do qual nunca nos devemos dispor em nossa jornada de peregrinos, mesmo que difícil, mesmo que distante, mesmo que sozinhos, pois, mirar o horizonte é permitido a todo ser humano, mas, construir esse horizonte e ser construído por ele a partir de uma visada de amor, é, sem dúvida, um ato de heroísmo.

“É só o amor, que conhece o que é verdade...”

Bernardo G.B. Nogueira - Conselheiro Lafaiete

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