terça-feira, 8 de novembro de 2011

O Palhaço...




Palhaço


Nossa! Isso aqui a esta hora sempre está vazio!

A exclamação daquela mulher, em uma manhã acinzentada que contrastava com o espírito de Gaia, a trouxera de volta para sentidos reais envoltos a um cheiro de fumaça de carro misturada com um ar parado da mesma manhã que não tinha cara de primavera - Gaia foi um apelido dado por um tio que sabia-se metido a filósofo e que gostava de alcunhar as pessoas com os elementos do globo.

Essa mesma exclamação criaria espaço para que um sem fim de lugares se apresentassem aos olhos dessa mulher que tinha pela frente apenas uma manhã, as próximas horas não estavam sob as suas previsões. O clima e os cheiros da manhã seriam os únicos guias para Gaia.

Seguiu um caminho não traçado. Seus passos foram se desenhando e a ela caberia apenas ir, não havia como alterar a rota de uma traçado desconhecido. A manhã ainda permitia os óculos escuros. Quase um escudo. Antes de sair do carro, ainda havia olhado pelo vidro a tentar desafortunadamente alcançar o tom da mulher dona da exclamação avivadora. No entanto, a moça nem sequer titubeou, altiva, entrou no carro e se perdeu por entre os vidros negros. Restou a Gaia, apenas o timbre dos olhos cor de amêndoa e vivos como os de um recém-nascido.

Mais um passo, e agora já estava dentro do shopping. O cenário deste local é menos aterrorizante nos dias "de semana" pela manhã.

Lembrou-se de tirar os óculos alguns minutos depois das indagações que recebia entre os olhares dos demais transeuntes. Riu de si mesma. Lembrou do tio que sabia-se filósofo e riu das pessoas ao seu redor.

Como não havia programado sua ida, fez coisas que habitualmente faria. Comeu um sanduíche que nas propagandas se apresentava um tanto mais apetitoso. Tomou também um copo inteiro de Coca-Cola. Levantou-se da sempre tumultuada praça de alimentação e lançou-se ao encontro das pessoas. Tinha lá uma tese de que dentro dos shoppings e dentro da alienação capitalista as pessoas viviam como sonâmbulos, não sabiam que estavam ali, e entorpecidas precisavam de um espetáculo qualquer para retomarem a "consciência". Precisavam comprar.

Percebeu que ainda estava absorta pela exclamação da enigmática mulher de olhos amendoados que encontrou na entrada do shopping. Não era o sanduíche que estava sem gosto. A realidade em que se havia dado é que não permitia sentir seu gosto. Talvez um filme soubesse bem àquele momento. Sim, seria.

Caminhou lentamente até a bilheteria, sacou o cartão, pagou e se entregou. O momento em que a atendente falava sobre as opções de filmes foi saltado por Gaia, apenas disse que seria o filme da próxima sessão. Só depois percebeu qual seria o filme a ser exibido: "Palhaço". O nome com toda carga mágica que carrega consigo trouxe em Gaia uma explosão de sentimentos nostálgicos de sua infância. A canção que apresentava o filme fez com que seus olhos fechassem e sua alma levitasse até uma infância que não viveu. De soslaio conseguiu perceber que o diretor já era conhecido por ela, daí, inocente se deu ao filme.

De dentro da sala de cinema não havia tanto o que dizer, uma arte sendo encenada dentro de outra arte foi uma sensação que Gaia apenas havia experimentado enquanto ouvia as teorias de seu tio metido a filósofo e artista. Sensações daquelas em que o espírito parece querer pular para fora do corpo em pura magia. Palavras não seriam o bastante para essa expressão.

Assim, como acontecera num romance de Garcia Marquéz, em que, o local, de tão inóspito, não trazia ainda conceitos para explicar as coisas, carecia, portanto, que as pessoas apontassem o dedo para indicar as coisas - ações típicas de criança. Foram assim os momentos dentro da sala de cinema que há muito já se havia transformado em uma imensa lona de circo.

A criança que saltitava dentro do coração de Gaia tinha sonhos tão distantes que por vezes seus olhos marejavam - ora de cansaço pela viagem que nunca chegava, ora de saudade de uma infância distante que ela não havia presenciado, pura emoção. Mais uma vez uma sensação infantil. Toda esta sentimentalidade foi para Gaia também uma surpresa, como aquelas que temos quando ganhamos uma bicicleta no Natal.

Resolveu, lá pelas tantas, também "ser de circo". Mas não foi um gesto de escolha tão somente. Havia um amor e uma incerteza a flamejar em seus olhos de mulher que agora era criança. Essa incerteza tinha o gosto salgado das lágrimas que tomavam seu rosto diante do circo.

Quando foi "de circo", riu do palhaço e sonhou ao ver o malabarista. Amou o poeta e se entristeceu a cada baixar de lonas. Cerrou os olhos e depois já era outra paragem, outra cidade, risos outros, olhares e lágrimas também. Viu o palhaço triste a se perguntar quem o faria sorrir. Viu amores nascendo sob a lona criadora de sonhos. O circo era pura magia.

Ao sair da sala de circo, resolveu perguntar à mulher de olhos de amêndoa qual o sentido e o problema de estar ali sempre vazio em manhãs escuras de um dia de semana. Gaia, por certo, não iria encontrar mais essa moça. Ela já estaria entretida no espetáculo do mundo.

Da porta do shopping, agora via pingos de chuva, não poderia mais colocar os óculos escuros. Mas, não havia mais essa preocupação, nem com os óculos e nem com a mulher do carro com vidros negros. O circo tinha que continuar. Agora, Gaia tinha uma amiga, Aurora. Tinha esse nome, pois foi ela quem trouxe o novo, a que foi criança todos os dias, a que permitiu Gaia preencher a manhã, vazia. Aquela que iniciou seu dia. Aquela inocente que acredita em palhaço!

Bernardo G.B. Nogueira
Itabirito - de manhã.

2 comentários:

  1. Bem escrito como os outros, feliz e melancólico como o filme...Ameeiii!

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  2. Texto lindo, frágil, somente para aqueles que ainda confiam e acreditam nos seus sonhos e desejos...
    Como é fundamental encontrar pessoas para que possamos insistir e persistir em nossos sonhos...
    Siga os seus, sempre haverá uma Aurora a te escutar....
    Suficiente.

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