Da vida: o
que não se pode saber
“Somos o que há de melhor
Somos o que dá pra fazer
O que não dá pra evitar
E não se pode escolher”
Humberto
Gessinger
“Para
se opor ao mundo contemporâneo pode-se atuar na política, mas estar cativado
completamente por uma obra de arte ou estar profundamente enamorado é como uma
rebelião secreta e pessoal contra o mundo contemporâneo.”
Alain Badiou, in,
Carta Capital 02/2012
Vamos mais uma vez ingressar
nesses sentimentos que alguns filmes nos criam. Eu sempre estou a me referir a
sentimentos quando escrevo sobre cinema. De um lado eu poderia pensar que é uma
possibilidade de me furtar a críticas, pois estou a me referir a sentimentos,
subjetividades, portanto. Contudo, de outro lado, menos que o receio da crítica,
me sinto na obrigação de dizer assim. Sobretudo em dias em que as artes estão
relegadas àquilo que delas faz a “Indústria Cultural” e, portanto, prefiro
pensar que escrevo assim para me aliar a Badiou e me rebelar contra o
status quo em que estamos imersos.
Bom, o filme que me desperta os
olhos e o coração é “Medianeras - Buenos Aires na era do amor virtual”, de Gustavo
Taretto. Ter a capital argentina como pano de fundo de uma filmagem já seria
algo interessante por si só. Quando caminhamos por Buenos Aires somos
transportados para um tempo que é contado pelas esquinas e cafés, pelas veredas
e pela história sempre muito peculiar dos seus moradores. O fato dos argentinos
terem se rendido ao estilo francês de construção e, de certa forma, também de
relação com a cidade, faz com que a cidade seja já um cenário artístico. O
cosmopolitismo de Buenos Aires confundido com o bairrismo portenho inaugura
novos sentimentos e olhares a quem está por ali a sentir o cheiro dos cafés.
No entanto, não é esta Buenos
Aires que o filme Medianeras retrata. O diretor capta de maneira extraordinária
aquilo que não é visto pelos olhares comuns. Há uma leitura interessantíssima
que conduz a uma reflexão sobre a cidade como espelho do interior humano. De
certa forma, o diretor resgata o pensamento platônico acerca da organização da polis, que, para este filósofo – em proporção
maior – se organizaria da mesma forma que o corpo humano.
Nesse sentido, a desordem com que
a cidade cresce. A desfaçatez dos edifícios inertes e imensos. A longitude dos
fios que entrelaçam relações escondidas pelo anonimato de uma sociedade que não
desliga, mas que tem a sensação de estar sempre a dormir. Isso tudo está a
serviço de expor o modo frenético e desalinhado com que estamos a nos
relacionar. Arquitetura citadina como reflexo da arquitetura humana. Há ali, na
cidade, um mar de pessoas que não escolhem sua existência e são medidas em
acordo com os metros que conseguem manter para que possam se esconder da multidão
lá fora. Multidão da qual têm notícia a todo momento, pelos blogs, faces, twitter
e demais ferramentas de comunicação. Ferramentas. A própria nomenclatura diz a
que se dão: facilitar a realização de algo, no entanto, como dizer que as relações
humanas são fáceis e simplificáveis?
Esta face estranha de Buenos
Aires causa uma sensação quase que claustrofóbica no expectador, uma vez que o diretor
mostra que a cidade cresce sem o controle pretensamente querido pelos cidadãos.
Cresce, e paradoxalmente sufoca os que nela habitam. A cidade que se vira de
costas para o rio que a margeia e por aí segue uma via de crescimento antinatural.
Que não aproveita o silêncio das águas do rio da Prata que de tão imenso, como
diria Borges, parece nem se movimentar. Esse caos das construções, a vida
virtual, mias real que o real, e a contingência dos desencontros e encontros,
entremeados pela excitação da polis, são
bons fios condutores para o desenvolvimento da trama.
As indagações existenciais são
inevitáveis quando lançamos um olhar diferente e mais parcimonioso para
qualquer objeto. Várias faces podem ser desveladas quando a pressa dos soslaios
dá lugar à calmaria da admiração – palavra por certo mais romântica e adequada
a uma vida menos robótica. Em Buenos Aires, há frases de Borges espalhas por
muitas esquinas. Palavras que nos conduzem ao seu universo imagético. O autor
de “Medianeras”, não se utilizou desse charme diretamente e nem mencionou a
poesia que há no “castelhano” dos portenhos. Na película vimos uma outra face
de Buenos Aires, mas, quase sem querer, de maneira inevitável, a cidade não
consegue deixar esse romance inato escapar. Por isso, por entender que há algo
de inevitável entre os excessos de construções, angústias, solidão e vida
virtual, nos propusemos aqui relacionar
o filme a uma fala de Badiou e a uma canção de Humberto Gessinger.
Vamos a esses pensamentos ou
sentimentos.
Há no filme dois personagens
muito interessantes: Martin (Javier Drolas) e Mariana (Pilar López de Ayala). Eles
moram na mesma rua e em prédios vizinhos. Cruzam-se em alguns momentos, mas
nunca se encontram. A cidade os direciona, ora para um encontro, ora para o
desencontro. Seguem, cada um sua vida, sem ter lá muito direcionamento. Ele, um
produtor de sites que tenta se curar de uma fobia. Fobia do encontro com o
outro. Por isso começa a fotografar a cidade. Uma forma de se relacionar
novamente com as pessoas. Ela, uma arquiteta malsucedida que por enquanto
trabalha montado vitrines. Cada um a sua maneira faz reflexo dos vultos que a polis cria no homem pós-moderno.
Martin se relaciona com o mundo
pela internet, desde sexo até comida pronta, tudo por ali. A realidade dele é a
sua ferramenta de trabalho. Forma e conteúdo se confundem. Mariana vive de
maneira irreal com seus manequins. Há uma relação bastante intrigante entre ela
e os manequins e entre Martin e a internet. Nenhum dos dois pessoas muito bem
adaptadas. Ela tem fobia de elevadores, isto em uma cidade que cresce
verticalmente torna as coisas ainda mais difíceis. Ele, abandonado pela
namorada que retorna ao Estados Unidos, vive com fobia das pessoas. Isso em uma
cidade que cresce sem medidas, também não ajuda muito. Ela transa com os
manequins, ele com uma mulher qualquer na net. Ela escuta a música que o
vizinho toca ao piano. Ele escuta uma de suas milhares músicas “baixadas” pela
internet. Ela fuma cigarros enquanto se confunde com as vitrines. Ele fotografa
pessoas enquanto não se confunde com nada.
Duas vidas parecidas. Absorvidas
pelo frenesi da cidade e dos prédios em que vivem. Das relações fugazes. Dos
abraços sem aperto. Dos cafés descafeinados. Do leite pasteurizado. Do outro
sem face. Do sorriso comprado. Confundem-se entre a vida real e o personagem
que encarnam para sobreviver. Nas fotos, Martin recupera a vida das pessoas. Em
suas vitrines, Mariana tenta encontrar um espaço que lhe dê sentido.
Encontrar. Desencontrar. Viver.
Sobreviver. Esses verbos de alguma forma nos encaminham para o enlace que
gostaria de fazer em relação a Badiou e Gessinger. Na entrevista que o francês
concedeu à Carta Capital, nos incitou a criar sentido para a vida a partir de
uma ideia. Pois só a partir dela é que poderíamos estar de maneira autêntica no
mundo. Portar-se de forma tal que sua vida tenha um sentido criado por si e não
meramente dado e obrigado, como uma imposição. A ideia é aquilo que não pode
ser quantificado. Que não pode ser medido pela matemática opressora da vida na
cidade. Essa possibilidade, em acordo com o autor, se dá no reino da criação,
da ideia, de estar enamorado por algo. Assim, “quando estamos enamorados,
trata-se de uma ideia e isso é o que garante a continuidade desse amor. Para se
opor ao mundo contemporâneo pode-se atuar na política, mas estar cativado
completamente por uma obra de arte ou estar profundamente enamorado é como uma
rebelião secreta e pessoal contra o mundo contemporâneo.”
E aqui, estas três formas de arte
começam a dar as mãos. Mariana esteve sempre envolta em uma procura
desafortunada, pois “se até no livro, mesmo sabendo quem está procurando, nunca
consegue encontrar o "Wally" na cidade, imagina encontrar alguém na
cidade de verdade, sem nem saber quem está procurando.” Martin buscava, distraído
entre a internet e as fotos da cidade, encontrar-se a si mesmo, talvez na face
de um outrem real fora dos sites que criava. Badiou sustenta uma saída não
convencional para o caos da sociedade que tudo consome: enamorar-se. Pois estar
enamorado é não estar à venda, é se furtar ao holofote mais aceso, é desviar o
olhar para o rio, é não ver a cidade, os cubículos em que ela nos transforma,
conforma. Gessinger propõe em sua belíssima canção 3x4, que só vale a pena
aquilo que é inevitável, “o que não dá pra evitar e não se pode escolher”.
Tudo isso está inserido no enredo
do filme que tem como título “Medianeras”, palavra que foi traduzida pelo
diretor a partir do seu olhar próprio sobre Buenos Aires. Medianeras, como as
partes dos prédios que não têm nenhum sentido e que quase sempre são utilizadas
como local de venda de anúncios. Local inóspito e sem vida, que compõe a
paisagem da cidade habitada pela desordem exterior diametralmente parelha com a
interior. Nesse sentido, o fato dos personagens Mariana e Martin, subverterem a
“ordem” das construções e abrirem janelas em seus cubículos, traz o sopro de
vida que o inevitável precisa para submergir. Os raios de sol apontam a
possibilidade de o novo habitar o cinza de sempre. Da primavera. Do extra, do não
ordinário colorir seus olhos e ouvidos. Essa atitude de rebeldia talvez seja o
que antecede o inesperado, que não se pode prever, mas que se pode estar sensível
para receber. Sem luz, como simbolizado no filme, os olhares não se podem entrecruzar,
e a vida parece uma des-ordem sucessiva e disforme de fatos que sucedem os
outros infinitamente. E a cidade parece sem vida e sem nenhuma cor. Conformada.
Daí que imaginamos esses enredos
a se encontrar. Pois o cantor propõe um enlace a partir daquilo que não fora
projetado, assim como a Buenos Aires do filme também não fora. Assim como
Mariana não poderia prever que o Wally na cidade seria tão difícil encontrar. Assim
como Martin não pudera prever que não captaria o que procurava com sua lente. Do
contrário, ele seria capturado pelo inevitável que sempre foi a procura de
Mariana. A procura por algo que fizesse sentido e a retirasse da vitrine, algo
pelo qual ela pudesse se enamorar, algo que a fizesse encontrar o “Wally na
cidade”, nesse caso, inevitável, como o amor de Badiou, como a esposa de
Humberto Gessinger, como a distração de Martin perante a excitação da cidade.
Bernardo G.B. Nogueira
Outono – Itabirito.