segunda-feira, 24 de junho de 2013

Pra nascer tem que chorar




Pra nascer tem que chorar

Inicio essa prosa com um pedido de desculpas, pois mais uma vez a questão da violência e sua legitimização me obrigam a tornar à pergunta: o que difere a violência institucional, da violência não institucional? A mim me parece evidente a resposta, portanto, tentarei dar os motivos nas linhas que seguem.

O pretérito-imperfeito é uma forma verbal que indica uma ação amparada por uma condicionante, exemplo: “nós não queríamos”, mas, contudo, no entanto...E esse tempo verbal é um dos mais utilizados nestes dias de revolução que escrevem um capítulo autêntico na história do país.  

Existem vários problemas além desse do tempo verbal anuciado, mas por ora, ficaremos nele. Assim, quando percebemos a repórter do telejornal a dizer que havia um número “x” de manifestantes, enquanto, em verdade, havia o dobro de pessoas. E também quando assistimos às “nomeações” criadas, as imagens selecionadas e os repórteres e apresentadores a se posicionarem a favor da manipulação e seleção de imagens exibidas, parece-me que começamos a desvendar por que esse é o tempo verbal mais conjugado nesse momento. Ora, é um tempo que sempre está amparado em uma condicionante, uma justificativa, e para ser mais explícito, uma “desculpa”. Essa ação, no caso, eximiria (?) o autor das atitudes amparadas por esse tempo verbal. Portanto, observemos que o repórter precisa dizer a notícia que o chefe de redação configurou, sob pena de ser despedido. Então, diz-se “eu menti, mas não queria.” Participei da montagem das imagens que não mostravam a situação real e sim aquela que desfavorece quem luta a favor de direitos constitucionais violados pelo estado a serviço de um organismo internacional, “mas, não queria”.

Do mesmo jeito, escutamos aqueles que repreendem os manifestantes a dizer que estão a cumprir ordens. Apenas estão a defender o patrimônio público. Apenas querem manter a ordem. Contudo, o tempo verbal é o mesmo: “Não gostaríamos, mas fomos obrigados”. “Não queríamos, mas recebemos ordens”.  “Não queria, mas estamos a defender os interesses do estado”. Assim, em uma breve análise, percebemos que os atos que impedem a construção de um novo paradigma se fundam em argumentos “imperfeitos”, justificativas vazias. Ora, se somos livres, podemos não querer fechar os olhos para os abusos cometidos e deixarmos as condicionantes pra trás e tomarmos uma posição realmente justa. Pois parece cômico, se acaso não fosse trágico, o estado  declarar-se a favor das reivindicações, mas, no entanto, determinar como, quando e onde elas se realizarão. É uma contradictio in terminus dizer que há uma revolução, que haverá mudanças, se as amarras estão ainda tão bem estabelecidas. A fluidez dos reclames e a liberdade de realizá-los não podem ser determinadas.

Uma revolução inicia-se como o amor, sem saber quando, e vai dar, também como o amor, em locais que ainda estão por inventar. Por isso, insistimos, a repressão do estado e a delimitação em face do modus de fazê-la, seria, desde já, entregar uma cartilha de como manifestar. Assim, tudo restaria dentro do mesmo discurso. Prisão na linguagem, na ocupação do espaço e da face simbólica que fica evidente quando o estado mantém em suas mãos o controle daquilo que nasceu para não ser controlado. Nesse sentido, é evidente que quando as passeatas são proibidas violentamente de avançar, com o discurso, no mesmo pretérito-perfeito: “não gostaríamos de fazer isso, mas há ordens a serem seguidas...”, está-se a impedir que ela se concretize, que alcance seu sim. E os limites continuam estabelecidos. Nesse caso em específico, parece-nos que a justificativa mais uma vez é paradoxal: pois temos um aparato policial que diz defender os interesses do estado, da polis. Mas a polis é o povo que quer passar, assim, pergunta-se: o interesse ali defendido é mesmo o da polis? Se sim, não vivemos uma democracia, pois a maioria esta na rua, talvez uma oligarquia. Se não, como resta evidente, precisamos redobrar a atenção, pois o povo tem direitos constitucionais sendo esquecidos, e quando isso ocorre, necessariamente estamos em vias de um golpe. Ou, na melhor sic das hipóteses, estamos vivendo uma democracia falaciosa.

Não posso dizer sobre as individualidades envolvidas, sabemos apenas que há a criação das “nomeações”, artifício ardiloso que cria um problema enorme em relação aos que nele são envolvidos. Vejamos: quando um lado nomeia o outro de “vândalo” e se arroga no cargo de protetor do estado, a singularidade da pessoa se perde, e então, todos os atos são justificados e justificáveis- pelo fundamento místico da lei, a autoridade. Assim, a violência exercida contra quem é posto nesse coletivo resta sempre, a priori, justificada: nós, defensores da ordem, eles, “vândalos” e “baderneiros”. Contudo, além da advertência do uso desses ardis lingüísticos e ideológicos, quando a nomeação aparece, os direitos também são esquecidos, dai é  como dissemos, cria-se um verdadeiro estado de exceção em face deles, os nomeados.

Como falamos de linguagem, queria convidar a pensar sobre a palavra liberdade. Por certo que aqui a idéia é um conceito alargado do termo, que compõe, desde uma simples liberdade de locomoção – que esta restrita em determinados locais e em determinados momentos – até o exercício da liberdade de expressão - não tão em voga, apesar de insistentemente algumas emissoras de televisão e os organismos do governo afirmar que respeitam essa liberdade. Sim, respeita-se, desde que não saia “da linha”. Portanto, efiro-me à liberdade de uma prisão ideológica em que o humano desde sempre habita. Nesse caso, ser-nos-á impossível uma liberdade total, uma vez que sempre estamos habitando o mundo pela linguagem e ela nos condiciona, contudo, podemos ser criativos e ousarmos inventar. Dai que imagino nascer uma possibilidade. Nesse caso, nossa idéia, é superar esse limite moral que é imposto pelo uso do pretérito-perfeito que esconde o fascismo por trás de algumas ações e fazer com que o tempo verbal seja outro: o tempo verbal da revolução, do novo tempo que vem. Nesse momento, não haverá ordens que justifiquem uma ação contraditória, vil, injusta, opressora e covarde. Não haverá mais que fingir ser possível os conceitos de estado e democracia serem mencionados separados do povo, da vontade do povo. O poder, aliás, como dito na constituição, “emana do povo”.

Esse povo não pode ser repreendido sob as argumentações falaciosas que dissemos acima, pois defender o estado é defender o povoe e não querer determinar suas ações como se não tivessem autonomia para tanto. As pessoas sabem muito bem o que querem. Em especial agora, não querem ser repreendidas em suas casas - que são as ruas - por força de interesses escusos aos deles mesmos enquanto povo. Referimos aos ditos “perímetros fifa” sic, sic, sic. Respeitar esse perímetro é desrespeitar nossa constituição, nossa soberania.

Para encerrar essa prosa, pedi desculpas por mais uma vez perguntar sobre a violência institucionalizada e a não institucionalizada. Quero esclarecer que a violência que referimos como institucionalizada não é apenas aquela que os manifestantes sofrem no front, dizemos também da violência “simbólica” exercida pelo mercado que tudo corrompe. Da violência das políticas públicas não realizadas. Violência dos representantes do povo que dão ordens contra o povo, que desviam verbas e que não têm nenhum compromisso com a polis. Violência de um monopólio midiático que de maneira vergonhosa manipula dados e engana – quer enganar – as pessoas. Violência quando vemos o descaso com os professores. Quando vemos os parlamentares a viverem apenas para sustentar seus currais eleitorais sem discutir os problemas da nação. Vandalismo quando se vivencia uma democracia irreal, surreal, melhor dizendo. Vandalismo quando licitações são superfaturadas e determinadas antes mesmo de serem criadas.  Vandalismo quando superlotam presídios, quando querem aumentar penas, diminuir maioridade penal. Vandalismo quando nos furtam a infância e nos relegam a uma vida adulta marginal. Vandalismo quando a própria cidade nos oprime e nos discrimina. Vandalismo quando trabalhamos meio ano para pagar impostos e nunca mais vemos esse dinheiro. Vandalismo quando falamos em coeficiente eleitoral. Vandalismo quando depredam nossa identidade e nos relegam a uma existência inautêntica. Vandalismo quando investimos em grandes eventos, que só fazem criar mais exclusão. Vandalismo quando furtam a educação e assim, matam a possibilidade da criação.

A educação é mesmo necessária, sobretudo para percebemos que o tempo verbal pode mudar um país: permitindo uma revolução ou realizando um golpe. Num passado não muito distante, soldados nazi se justificavam perante o tribunal de Nuremberg dizendo que estavam a seguir ordens hierárquicas dentro de sua corporação. “Não gostariamos, mas...porém, contudo, todavia e entretanto, mataram”. Dai que junto de um novo tempo verbal, aquele tempo “que vem”, dever-se-ia inserir uma libertação ideológica, para assim, sairmos de uma existência que não se quer digna do humano. Porque não inventa, porque não cria, porque não sente. Porque criar, inventar e sentir, não são da ordem destes tempos que temos à disposição, por isso temos que experimentar o novo. O novo não esta no que já foi dito ou no que é estipulado, o novo, ah, o novo é aquilo sobre o qual não sabemos dizer, aquilo que não pode seguir apenas o determinado. Posto que cada ato de revolução é um ato de nascimento de novidação. E como os partos, até podemos prever o dia que ocorrerá, mas as lágrimas que lhes brindam, estas são da ordem do tempo que estou a dizer, aquele que ainda não existe, e que espera todos os dias dentro do humano para viver.

B.
direto do front

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Dia de quê?

Dia de quê?
 
Poderia dizer que a polícia, sobretudo do Estado de São Paulo, apenas afirma aquilo que Derrida nos ensina sobre o problema do direito. Mostrar que não há diferença entre a violência institucionalizada do Estado, e aquela que não é. Seria também fácil mostrar que as grandes mídias alteram o real e criam uma realidade fantasiosa que distorce o problema e aliena as pessoas. Hoje seria talvez o caso de escrever um texto de protesto dizendo que a polícia, que ademais, é outro problema que deve ser discutido com suas hierarquias incontestáveis, esta a agredir repórteres, mostrando claramente a ideologia fascista de um estado que não aceita “quem não o aceita”.
O dia é de mostrar que diferente dessa fraude mostrada nos estádios, nosso País sustenta índices enormes de barbárie diária, com pessoas em macas de hospitais pelos corredores, mulheres e homens vivendo pelas ruas sem teto e sem comida. Acaso apetecesse, poderia dizer mesmo que nossa constituição foi afrontada por uma liminar do TJMG que obstrui nossa condição legítima de protesto, de expressão, locomoção e de descontentamento. Parece um reavivamento dos atos ditatoriais lerem aquela decisão. Um momento que se assemelha ao momento em que se instaura em estado de exceção. Logo, seria dia de dizer que nosso país passa por um grave momento de afronta aos direitos humanos. E ainda, no time da grande mídia de massa, caberia talvez dizer que existem articulistas que chamam os jovens de alienados e sem causa, só porque a causa dos jovens não é  a dele.
Realmente, talvez devesse dizer algo do governante do Estado que disse do absurdo desses atos de barbárie e que ainda por cima são atos políticos. Mas este cidadão desconhece a origem da palavra político, e ai não sabe que tudo que é do humano é político. Aristóteles explicaria melhor, não o farei. Poderia também dizer que horas no trânsito são barbárie, que o transporte coletivo não oferece condições dignas, que uma política neoliberal expulsa a humanidade de quem com ela não se alinha. Barbárie são as pessoas que dormem pelas ruas e que passam a figurar como parte da realidade da cidade. Barbárie é também o imaginário sem criatividade e sem liberdade, haja vista o aprisionamento ideológico que o mercado consumista obriga. Aliás, dever-se-ia dizer do mercado que funcionaliza o humano e nem o deixa sentir mais como tal. Dai que agressões tornem-se comuns. Barbárie é não existir e, no entanto, ter que acordar três horas antes do trabalho, dormir pouco antes do horário de acordar, e ainda sustentar desmandos financeiros e politiqueiros de toda ordem. 
Não seria mesmo hora de calar. A história grita para ser escrita. Mas essa escrita esta obstruída pela mídia, pelo estado e pela ideologia opressora que começa a dar sinais de fraqueza. Hoje seria talvez o dia de dizer que o Brasil entra na rota de manifestações que estão em curso pelo mundo. O dizer de agora é história do amanhã, dai que os atos cometidos pelo nosso povo são os que nos irão constituir enquanto história amanhã, por isso trata-se de fazer a escolha acerca de quem irá contar a história, ou o que é pior, se nós iremos contá-la ou continuaremos a deixar que exista uma única história oficial para colocar nos livros. Hoje seria dia de dizer que a editoria é plural, do tamanho das cores que colorem os gritos nas ruas, é lá que o mundo “munda”. Seria lá o local em que essa união de amor dever-se-ia consumar. 
Hoje deveria ser dia de dizer que o cansaço institucional deu força para que a pulsão revolucionária pudesse existir. É sabido que as passeatas e manifestações revolucionárias são também um curso libidinal. Há uma força libidinal que atravessa as passeatas. Dionísio esta em embate com Apolo no momento em que se encontram estas duas forças: o povo e a policia, que representa o estado, que não representa ninguém que esta ali, uma vez que é contrário àquelas pessoas, mesmo que oficialmente conte outra história. Há então uma causa sim: a de contar estórias! Assim, esse encontro amoroso e recheado da libido que sustenta a manifestação, é o ponto que permite nascer um outro mundo, uma outra cidade, outra história, outra alteridade!
Talvez fosse momento de dizer que as canções do momento ditatorial começam novamente a fazer sentido, isso é uma constatação assustadora, mas real. A rua hoje é a alcova na qual se realizam os encontros amorosos que poderão fazer nascer outro tipo de existência. Menos sem cor e mais livre, mais humana e menos da cor que o estado diz que tem que ser. Tentativa de amar pra que a cidade seja um local em que os homens e mulheres se encontrem para ser felizes e não apenas para cumprir as regras excessivas: de trânsito, de comportamento, de adequação, de alienação, de inexistência de amor e de pluralidade.
O momento então deveria ser esse, de dizer, de falar, de protesto e de descontentamento. Momento de destruição de uma plataforma, para a construção de várias outras. Outras subjetividades, outras cores, diferentes daquelas que saem da violência que oprime as existências. Desde a violência ideológica até a violência corporal, sem saber dizer qual é pior: aquela flagela o espírito, corrompendo e castrando, manipulando e censurando, esta flagela o corpo - a violência em si é contrária ao humano. Não há justificativas para ela. Seria hora de dizer isso: que não há humanidade com agressões e sem liberdade de ir, de vir, voltar, amar e silenciar, de não aceitar.
Parece que existem muitas coisas a dizer: não liguem a tv, não se empanturrem da próxima tecnologia inventada, não deixem de lutar pela liberdade, não acreditem em estórias oficiais, não deixem de sonhar, não deixem de andar na contramão, não deixem de afastar o “cá-lice”, não aceitem o açoite, não fiquem parados, “mostrem sua cara”, “não comemorem como idiotas” as copas. Isso tudo sim é necessário, concordo, aliás, como concordo que o “fascismo é fascinante e deixa a gente ignorante fascinada”. No entanto, o que me resta, nestes dias em que a frase de 68 na França me toma -“quanto mais faço amor, mais tenho vontade de fazer revolução, quanto mais faço revolução, mais tenho vontade de fazer amor” -  absorvido por todo esse protesto quis ser revolucionário, quis destruir o estado, quis fazer barricada, lançar protesto e parar o congresso, e talvez sejam bons dizeres, e talvez seja a hora de dizer, contudo, não consegui, e saíram destas mãos, maltrapilhas, apenas estes versos que dentro mim também são revolução:
 
“...mas eu quero mesmo é amar,
assim, sem mesmo saber o que é,
revolucionariamente deixar pétalas caírem de minhas armas fortes,
manter teso o instinto em direção a ele,
incondicionalmente,
até mesmo quando chover,
molhado e quente, nunca adormecer
pra que o sonho seja acordado,
deixar pra trás aquelas todas explicações e chorar sempre que houver lágrima,
pintar muros e fazer poesia,
(...)
é isso, de ontem em diante vou querer mesmo é essa coisa de amar,
e assim, no dia que essa límpida noite de outono tocar sua janela,
estarei ali, esperando, como um cavaleiro andante a vencer todas os moinhos
só pra alcançá-la e contar a verdade:
quero só amar!”

segunda-feira, 3 de junho de 2013

O que é o real?



O que é o real?

O filme “Anônimo” (Anonymous) de Roland Emmerich restaura uma discussão longeva entre pesquisadores de todo o mundo: trata-se da real identidade e autoria das obras de William Shakespeare. Essa discussão encontra uma saída no filme, e é essa a nossa senda: existiu William Shakespeare?

Na trama que se desenvolve na Inglaterra elizabetana, é impossível não ser seduzido por uma fotografia belíssima do inverno inglês, assim como também não é possível se manter inerte às tramas que suscitam guerras, destroem e constroem homens.  Os interesses movem homens à busca do poder. A rainha Elizabeth parece sentir além da neve que circundava seu reino e seu fascínio pelo teatro a levou a esse anônimo que talvez tenha concebido William Shakespeare. 

Mas então seria esse filme uma história que muda a história? Seria então Shakespeare uma farsa? De alguma maneira entendemos que o filme responde a essa pergunta de maneira positiva e negativa ao mesmo tempo. Aliás, parece-nos que retratar a vida do maior construtor de obras para encenação nos palcos realmente não poderia ter outra conotação, senão aquela do paradoxo, da dúvida, da grandeza e da realidade, do humano, diria.

Quando nos detemos ante a figura de Edward de Vere,  Conde de Oxford, e suposto autor das obras assinadas por Shakespeare, várias são as direções para as quais o filme nos conduz. Figura politicamente malfadada. Infeliz nas escolhas econômicas. Em verdade, um bom estereótipo de um poeta. Aliás, em alguns diálogos do filme, muito bem construídos, a imagem do poeta, artífice de palavras e do mundo cênico é muito bem colocado. Amante e doente da vida. Assim é a poesia. Assim foi a obra de Shakespeare - seja ele ou não. Amar demais, sentir o vento cortar mais que o frio apenas. Morrer em cada gozo. Viver a revolução, levá-la pro palco. Criar a vida dentro de si em palavras, contar estória, inventar. Esse é o ponto que queria chegar para dizer o que intriga de fato no filme.

 Há uma teoria a discutir se de fato há uma realidade ou se apenas chegamos a ela a partir dos símbolos construídos em nossa consciência. Assim, não teríamos nunca acesso ao real de fato. Chegaríamos apenas àquilo que nele “colocamos” simbolicamente, criando então aquilo que se chama realidade. Nessa toada, questionamos: aquilo que existe na mente, como suposta ilusão ou imaginação, embora não esteja expresso na realidade tangível, não existe também de fato? 

Essa é nossa reflexão acerca da existência ou não de Shakespeare. O filme optou por mostrar um personagem com características bastantes para um artista deste porte. Contudo, para além dessa leitura, muito bem colocada, diga-se, propomos uma reflexão: pois se houve Shakespeare como Shakespeare, como querem uns e se não houve como querem outros – a nós não importa em nada. Temos a impressão de que esse real que se nos tem sido imposto, de fato, não há. Existimos na medida de nossa criação e imaginação. Portanto, se o lendário escritor, dramaturgo e poeta, esteve na pele do duque ou se esteve na pele de um ator bêbado, se fora letrado ou não, isso é desdém agora.

O que importa é a construção, imaginação acerca de Shakespeare que pudemos fazer. Nesse sentido, se ela aconteceu, então, o filme, dentro da teoria que aceita como realidade também aquela imaginada, responde que Shakespeare foi aquilo que a imaginação criou, e como com os heterônomos de Fernando Pessoa, agora poderíamos indagar também: existiu Bernardo Soares, Fernando Caeiro ou Fernando Pessoa? Sei não, sei só que existiu poesia, sei que existiu Desassossego e que existiu Hamlet. Assim, to be or not to be, poderia ser exist or do not exist? That is the question!

B.

domingo, 2 de junho de 2013

duvidação



duvidação

sabe-se lá se cada manhã deveria mesmo ser cantada,
nela se foi mais uma noite.
achamo-nos enganados em louvar a vida?
seria mais entendido louvar a morte?
dela temos toda a incerteza,
enquanto isso vivemos a correr,
dela e p’ra ela,
sem nos darmos conta,
caminhamos à mercê da vida,
mãos dadas com a morte,
uns com mais fervor,
outros mais distraídos,
aqueles contando horas,
esses últimos, prosas,
vendo os rios,
ah! essa manhã de outono me acabrunha,
sei se a dela me enamoro e faço cria?
sei se dela me desdenho e faço rima?
de todas as curvas,
a madrugada fez-se boa,
pois que de duvidar é que a gente voa,
e sem saber se dia ou noite,
se tarde ou aurora,
vacilo pelas tardes daquela estação que nem ri e nem chora,
todo outono a gente nasce,
e todo outono a gente morre,
as velas?
...podem acender pra quem nunca morreu.

B.

ENTREVISTA COM O AUTOR BERNARDO G. B. NOGUEIRA “O que me faz continuar é a possibilidade de inventar. Seja isso o que for.” Por Rodrigo Perini*

ENTREVISTA COM O AUTOR BERNARDO G. B. NOGUEIRA

“O que me faz continuar é a possibilidade de inventar. Seja isso o que for.”
Por Rodrigo Perini*
O autor mineiro Bernardo G. B. Nogueira – presente na “Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos” – é um ser totalmente admirável e intrigante que racionaliza sentindo e que sente intensamente. Sua capacidade de "construir junto" mostra como é intrigante compartilhar de seus pensamentos e estudos e chega a deixar uma certa ansiedade à espera de suas respostas feitas nessa entrevista exclusiva.
Rodrigo Perini – No seu livro, existe “Dois Olhares Sobre Florbela Espanca”, o que mais o atraiu para a composição dessa obra?
Bernardo G. B. Nogueira – Na verdade esse livro é uma relação amorosa. Primeiro com a cidade de Coimbra, onde morei enquanto fazia o mestrado, depois em relação à poesia de Florbela Espanca, e mais tarde quando retornei ao Brasil, pela musicalidade que meu parceiro no livro, o cantor e compositor Marcos Assumpção colocou pra cantar os versos de Florbela em seu cd intitulado “A flor de Florbela”. Então, o livro é uma relação dionisíaca com a poesia, com o amor, com a música e que teve na minha amizade com o Marcos um bom local pra ser parido. Além disso, a verdade da poesia de Florbela me chamou a atenção desde sempre. Quando lia seus poemas pelo pátio da Universidade de Coimbra ou nas margens do Mondego, ou até mesmo em um café, era transportado pra um local que só o poético nos leva. Florbela me fazia nascer a cada verso, e eu vivo pra renascer, pra amar e tragicamente, como é a existência humana, sofrer e sentir saudade. Apaixonei-me por Florbela e seus versos.  
 
Rodrigo Perini – Quais foram às descobertas mais interessantes sobre esta poetisa feminista e/ou feminina?
Bernardo G. B. Nogueira – Florbela marcou muito essa questão em Portugal. Foi a primeira mulher a cursar direito. Foi uma mulher que se separou mais de uma vez. Teve abortos. E principalmente amou. Parece que a maior conquista que miro no horizonte feminino de Florbela é sua permissão ao amor. Essa mulher, vivendo em um Portugal antigo, como canta em um de seus versos, preconceituoso, machista e intolerante, conseguiu morrer de amor. Isso foi a maior descoberta, o maior ensinamento, a maior inspiração. Florbela pdoeria ser dita como uma heroína trágica que em seu caminho para o fim, percorre a estrada do amor. Com toda a força, beleza, fragilidade e rudez.  
 
Rodrigo Perini – Em que momento de sua vida Emmanuel Lévinas  teve influência? Como se deu essa relação?
Bernardo G. B. Nogueira – Bom, o Lévinas me foi apresentado no mestrado em Coimbra. Estudei alguma coisa de seu pensamento com o professor Linhares e a professora Fernanda Bernardo. Na verdade eu estudo autores que me fazem sentir algo, essa coisa do logos é apenas uma parte de minha estrada intelectual, prefiro pensar com o coração. Daí que pensa junto com Lévinas me foi permitido relacionar minhas intenções políticas, pois, entendi seu pensamento como uma possibilidade de perceber uma relação amorosa com o outro, e como minhas coisas se misturam, parece que há ali um algo de linguagem poética, da construção de si pela alteridade absoluta do rosto do outro que me ganhou na hora. Assim, pelo fato de ser um autor que rompe com uma racionalidade moderna e castrante, e abre ao outro a possibilidade de existir, não vejo nada mais interessante que isso para ler a situação filosófica, jurídica, política do mundo. A alteridade de Lévinas permite a pluralidade que restou esquecida por um pensamento hegemônico, mas que agora, emerge com força e o arco-íris deixa de racional e monocromático, se pinta de várias cores, vários outros e várias sensações. A razão imperial esta em decadência. Lévinas é um autor que nos permite essa lucidez!
 
Rodrigo Perini – Quais são outros autores que te inspiram, te acompanham e/ou te constroem?
Bernardo G. B. Nogueira – Os gregos foram, sem dúvida, componentes necessários à minha formação, aliás, eles são a base do meu primeiro livro: Ecos do Trágico, que escrevi em parceria com o Ramon Mapa. Cervantes, Borges, Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes e o Guimarães Rosa são autores necessários a mim. O Wilde também me marcou muito. Quando li “O retrato” pela primeira vez foi mais um dia que nasci. Isso também aconteceu com o “Dom Quixote”, com o “Livro do Desassossego” e com poesias do Pablo Neruda. A música do Chico Buarque também me acompanha sempre. Hoje estou envolto com questões latinoamericanas. Então, leio as coisas do Galeano, do Enrique Dussel, e aqui no Brasil tem um professor em Belo Horizonte, o José Luiz Quadros de Magalhães, ele diz coisas novas, ele merece ser ouvido. Junto disso, agora, estou lendo de novo o Nietzsche. Não poderia deixar de mencionar o Brecht, organizei uma obra conjunta de Direito e Literatura, sairá publicada em junho, lá escrevi sobre uma personagem deste pensador que me traz muita lucidez. Mas como sempre necessito me formar, leio o Kafka pra perceber a realidade melhor. Outro autor que eu citaria é o psicanalista e filósofo Slavoj Zizek.
 
Rodrigo Perini – Crítica, poesia ou direitos humanos, qual trabalho é mais satisfatório? Qual é mais intrigante?
Bernardo G. B. Nogueira – Nossa!!! Essa pergunta me deixa paralisado. Bom, não imagino essas coisas separadas, isso é um primeiro ponto que queria deixar claro. Veja, se perceber bem, quando leciono e escrevo sobre direitos humanos, preciso me valer de toda ordem de critica para alcançar algo, inclusive a compreensão das pessoas e dos alunos me geral. Estou a usar o livro Profanações do Agamben para falar de Direitos Humanos. Esse livro me ajuda a mostrar que para falar em direitos  humanos, precisamos profanar essa idéia colonizada e fascista que temos de direitos humanos. Sempre cito A revolução dos bichos, só pra usar aquela frase: “todos iguais e tão desiguais, uns mais iguais que os outros”, que o Gessinger cantou também. Nessa onda, mostro que sempre houve uma apropriação do discurso de direitos humanos para uma imposição ideológica, opressora e excludente. Assim, não dá pra falar de direitos humanos sem uma idéia que não seja crítica. Não dá pra criticar sem pensar no outro, no humano. E isso tudo pra mim é poesia pura. Critico a existência fazendo poesia dela. Crio meus poemas pra existir, e para que essa existência tenha alguma autenticidade, necessito não me entregar e resistir ao aparato ideológico que nos assola e retira qualquer inspiração. Portanto, mais satisfatório e caminhar tendo estas vertentes sempre no horizonte. Intrigante pra mim é viver sem poesia. E viver, como diria lá no Grande sertão, “é muito arriscado”. Viver é intrigante não?
 
Rodrigo Perini – O que te faz continuar?
Bernardo G. B. Nogueira – Essa pergunta deveria ser o mesmo que escrevem em nosso epitáfio. O que me faz continuar é a possibilidade de inventar. Seja isso o que for. Porque não posso prever o que vou criar amanhã, mas durmo pensando que no outro dia haverá uma ideia, isso é o que me faz levantar da cama. Esse amor que me rodeia, a mim e as minhas palavras e atos. Sempre carrego amor nas coisas que faço, sem hipocrisia. Amo desde meu trabalho até o cigarro que de vez em quando fumo. Amo a tragédia de não saber qual será meu próximo verso, minha próxima aula, o próximo olhar que ficará pra sempre em mim. A próxima história que irei contar, é por ela que continuo. Pelo cadinho de amor que posso doar, com minhas idéias, meus gestos, meus versos e meu silêncio.
 
Rodrigo Perini – Você precisa se fechar num mundo 'particular' pra que consiga desenvolver ou é algo quase 'fisiológico', natural?
Bernardo G. B. Nogueira – Não e sim. Não porque criamos a todo momento, concordo com o Mia Couto quando diz que escreve todo hora. É assim mesmo. Penso que a idéia é estar com os poros abertos. Sensível. Solícito à vida, assim a gente escreve. E sim porque depois de alguns anos eu acabei percebendo que em vários momentos eu tinha lá minha forma e visão bem peculiar da existência, nesse sentido, preciso de alguns momentos com minha angustias pra escrever alguma coisa. Do mesmo jeito, há uma pulsão, que você chamou “fisiológica”, que também me acomete. Isso acontece sempre como uma forma de reação ao mundo mesmo. Então, voltamos ao que eu disse. Não há uma clausura, e há uma clausura. Não há porque o mundo escreve a gente, e há uma clausura porque nós escrevemos no mundo e o mundo. Então essa dialética estabelecida entre nossas entranhas e nossas “extranhas” é que faz nascer a criação. A relação, no entanto, em meu caso, é mais dionisíaca que qualquer outra coisa. Se não houver o inevitável, não consigo criar nada!
Rodrigo Perini – Acredita que a mídia manipula listas de preferências ou dos "mais lidos" em troca de benefícios econômicos?
Bernardo G. B. Nogueira – Bom, por conta de minha inclinação de esquerda e minha preferência pela carne que pela roupa que a reveste, nunca me liguei nestas coisas. Mas é tão evidente como imbecil não perceber isso. Estas listas, assim como as estatísticas, criam o fetiche do consumo. Nossa, eu, com todo respeito, acho até meio chato falar isso. Não por uma pecha de “intelectualóide” que porventura saiba das coisas mais escondidas. Mas é que me parece isso tudo tão evidente que acredito que as pessoas sabem disso, mas estão tão cansadas pela tentativa de acompanhar um tempo, um estilo e uma moda que não existem no mundo real, e por isso são inalcançáveis, que aceitam, e vivem em um conto em que são os personagens mais insignificantes e figurantes, mas quando alcançam  uma “pontinha” na cena, já se dão por satisfeitas. Isso de mais lido é tão real quanto dizer que um ser humano é naturalmente melhor, que as escolhas sexuais distinguem as pessoas, que a cor implica em algo, que a religião salva, que a tecnologia é nosso horizonte único, que o capitalismo não morre, que a democracia é real, que o conclave não é decisão política e que o amor é impossível.
 
Rodrigo Perini – O que acha disso como autor e como professor de direitos humanos, já que a literatura foi comercializada, vendendo informações tão próximas de um “enlatado”?
Bernardo G. B. Nogueira – Responder isso pra você é alimentar isso tudo. Não podemos querer destruir um muro ideológico construindo outro. Então, não posso apenas lançar bombas, pois os caras do outro lado fazem isso já. Uma pluralidade dialogal seria uma saída para essa carnificina ideológica que vivemos hoje. Superar esse momento não pode ser usando as mesmas armas que sempre foram usadas. Penso que em face dos direitos humanos, a hegemonia é sempre danosa, desde a religiosa, econômica, política, jurídica, na literatura, na linguagem, na poesia e na existência como um todo. Imagino que como diria Derrida, o por vir deve ser sempre o horizonte no qual se deve travar esse diálogo. Então, apenas criticar essa implantação de um modelo não vai fazê-lo ruir, como disse, isso o alimenta, pois a “sociedade do espetáculo” precisa de reclames a todo momento. Então, talvez o alarde por si só não funcione. O que miro em meu horizonte é uma “linguagem que vem”, um “homem que vem”, um “estado que vem”, uma “literatura que vem”, uma “existência que vem”. Vivendo assim, o outro não resta enclausurado em minha ideologia, nem eu na dele, e nessa interação dentro desse novo desconhecido, criamos juntos, sem bombas. Devemos criar uma nova subjetividade, isso sim é revolução, “o resto é mar...”
 
Rodrigo Perini – E sobre a educação nas escolas e faculdades que não priorizam a leitura?
Bernardo G. B. Nogueira – Isso realmente é um ponto chave. Apesar de ser afeito aos governos que estão à frente do país, vejo que a questão da educação não está na pauta e nunca esteve. Penso que o Cristovam Buarque seja uma das poucas pessoas sérias quando falamos neste assunto. É precária a educação de um modo geral, e isso mantém algumas hegemonias. No entanto, o acesso ao estudo melhorou significativamente. Isso é um bom dado, os programas do governo para bolsas são interessantes e tudo que se refere à pluralização e inserção, eu acho interessante. Isso ao arrepio de uma classe burguesa que de maneira inexplicável por eles próprios ainda diz: “existem alunos de curso técnico e alunos de curso superior”. Eu já ouvi isso de colegas que lecionam no curso de direito, e como sabemos que discriminar é crime em nosso país, penso que deveriam estar presos e respondendo por essas falas infames, colonizadas e sem fundamento qualquer. Desafortunadamente as escolas se volveram em núcleos endurecidos de ensino. Não ensinam nada. Querem tornar o aluno em um próximo elemento que irá compor e sustentar um mercado. Formam-se profissionais embrutecidos, que embrutecem suas vias, sem poesia e sem arte. Isso sim é danoso. E tem ainda a questão do tipo de ensino uniforme, antiquado e acrítico. Ouso dizer que a escola embrutece, formata e joga fora no mercado de trabalho. Isso então não pode ser chamado de local de formação, mas sim, deformação. As faculdades seguem a mesma cartilha do mercado. Ao menos naquelas que conheço. Então, como também penso que a filosofia tem que ser engajada. Faço minha parte com meus alunos, tento libertá-los dessa aniquilação que sofrem desde o início de sua “escolaridade”. Há saídas, temos que nos valer delas. Usar as mídias e falar a língua da moçada são formas de levá-los até o que entendemos ser bom. Uma formação plural, plural, plural!!!
 
Rodrigo Perini – Sobre sua participação no livro “Antologia  de Poetas Brasileiros Contemporâneos” da Coleção Literatura Clandestina, organizado por Elenilson Nascimento, pela Editora Pimenta Malagueta? Como foi essa participação? O que achou deste novo trabalho?
Bernardo G. B. Nogueira – O Elenilson foi uma cara que conheci via internet. Esse novo habitat nosso. Então, li algumas coisas sobre ele, achei um cara interessante, com ideias e atitudes de resistência a essa massa disforme e conforme que vemos a cada dia crescer. Depois disso ele publicou alguns poemas meus no blog PMC e agora estou aqui. 
Bernardo com o seu coautor Marcos Assumpção, no lançamento do livro “Dois Olhares Sobre Florbela Espanca”.